A vida de um assistente social divulgando empoderamento.

14/11/2011 - Romeu Kazumi Sassaki.*

História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil

Romeu Sassaki nasceu em 1938. É natural de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. É formado em Serviço Social pela Faculdade Paulista de Serviço Social. Durante a faculdade, fez estágio no Instituto de Reabilitação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, onde permaneceu até 1974.

Entre 1966 e 1967, ganhou uma bolsa de estudos da ONU, por meio da qual fez diversos cursos e estágios de atualização na área da reabilitação profissional, durante nove meses, nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. Desde então, passou a receber as publicações da ONU.

Em 1979, quando começaram as reuniões do Movimento das Pessoas com Deficiência, Romeu alimentava as reuniões com os documentos traduzidos da ONU. Em 1975 fundou o Centro de Desenvolvimento de Recursos para Integração Social (CEDRIS), o qual administrou até 1990. Em 1992 foi para o Rio de Janeiro trabalhar como diretor executivo do CVI-Rio por um ano e meio. É um dos fundadores do Centro de Vida Independente Araci Nallin (CVI-AN), de São Paulo.

É representante do Conselho Nacional dos Centros de Vida Independente (CVI-Brasil) junto ao Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE) para a gestão 2009-2011.


Atuação profissional e ingresso no Movimento das Pessoas com Deficiência.

Entrevistador: Como foi seu ingresso no Movimento de luta das Pessoas com Deficiência?

Romeu Sassaki: Estou atuando na área de atendimento às pessoas com deficiência desde 1960, ano em que também me tornei universitário no curso de Serviço Social. Na faculdade, o coordenador me mostrou a oferta de estágio oferecido pelo Instituto de Reabilitação, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Esse instituto, inicialmente com o nome de Instituto Nacional de Reabilitação (INAR), foi instalado pela ONU em 1957. Todos os equipamentos e aparelhos eram importados.

O Instituto me proporcionou muitas coisas boas. Uma delas foi a bolsa de estudos da ONU, por meio da qual fiz diversos cursos e estágios de atualização na área da reabilitação profissional, durante nove meses, entre 1966 e 1967, nos EUA e na Grã-Bretanha. Tudo isso me marcou muito.

Entrevistador: Você trabalhou no Instituto de 1963 a 1974?

Romeu Sassaki: Isso. Estagiei em 1963 e atuei como profissional de 1964 a 1974. Em 1966 e 1967, como bolsista da ONU, fiz um estágio maravilhoso, que abriu meus horizontes. Hoje é mais comum uma pessoa estudar no exterior, mas naquela época era novidade. Por isso, após retornar dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, realizei, entre 1967 e 1969, um grande número de palestras, reuniões e cursos em entidades de reabilitação e empresas. Como havia tirado cerca de 3 mil slides durante aquela viagem e coletado grande volume de material impresso, eu tinha muito assunto para fazer essas atividades.

Entrevistador: Que tipo de discussão você trouxe que acha consistente com o que viria a ser o Movimento de Luta das Pessoas com Deficiência no Brasil?

Romeu Sassaki: Quase tudo o que eu trouxe naquela época era novidade no campo da reabilitação profissional: como eram feitas as colocações em empregos, quais recursos técnicos e tecnológicos havia, quais eram os profissionais de equipe multidisciplinar, como esses profissionais eram formados e atualizados. Divulguei e introduzi esses conhecimentos na minha prática profissional. Em 1969, tornei-me vice-diretor da Faculdade de Serviço Social da então Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), onde permaneci até 1974. De 1975 a 1990, administrei o Centro de Desenvolvimento de Recursos para Integração Social (CEDRIS), por meio do qual fiz parte do Movimento das Pessoas com Deficiência, que nasceu em 1979. Foi Heloísa quem me convidou para participar na organização do movimento.

Entrevistador: Heloísa Chagas?

Romeu Sassaki: Sim, Heloísa Chagas, em 1979. Essas foram as primeiras reuniões do movimento. Participaram Maria de Lourdes Guarda, Sérgio Del Grande e Thomas Frist, dentre outros.

A mobilização do movimento no início da década de 1980.

Entrevistador: E a Coalizão Pró-Federação Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes?

Romeu Sassaki: Esse nome é importante, é histórico, foi uma ideia que eu trouxe dos Estados Unidos. Uma coalizão é a união de várias forças que antes atuavam isoladamente, às vezes até brigando entre si. A Coalizão é uma união, não uma fusão: cada entidade continua com sua identidade; as entidades são envolvidas para trabalhar junto.

O 1° Encontro Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes – 1980.

Entrevistador: Por que o primeiro encontro foi feito em Brasília?

Romeu Sassaki: Naquela época, Brasília ainda era nova, mas era o centro do poder, o centro das decisões: para mudar alguma coisa, precisávamos começar por lá. Então, fomos a Brasília. Benício Tavares da Cunha Mello, em janeiro de 1980, e José Roberto Furquim da Silva, respectivamente, presidente e vice-presidente da Associação dos Deficientes Físicos de Brasília (ADFB), organizaram o 1° Encontro Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes. Participaram Robinson José de Carvalho, de Ourinhos; José Roberto Furquim da Silva; Heloísa Chagas; José Gomes Blanco; o arquiteto Carlos Burle Cardoso, com amputação bilateral acima do joelho; e o advogado Vinícius Gaspar Viana de Andrade, com paraplegia, que também foi um forte ativista. Ele e David Pinto Bastos atuavam na Associação Brasileira de Deficientes Físicos (ABRADEF), que era uma das entidades de sobrevivência.

Antes do surgimento do Movimento de Luta das Pessoas com Deficiência, havia diversas entidades fundadas por pessoas com deficiência com a finalidade básica de obter meios de sobrevivência (dinheiro, roupas, alimentos, trabalho, moradia, etc.). Essas entidades eram exclusivas para pessoas com algum tipo específico de deficiência: só para cegos, só para surdos, só para quem tinha deficiência física. Além de serem específicas por tipo de deficiência, essas entidades não admitiam pessoas sem deficiência. Em meio a tantas entidades de sobrevivência, o surgimento do movimento de luta pelos direitos de pessoas com deficiência foi uma enorme novidade, um fato socialmente revolucionário.

Ano Internacional das Pessoas Deficientes - 1981.

Entrevistador: Esses eventos, na década de 1980, foram motivados pelo Ano Internacional das Pessoas Deficientes, em 1981?

Romeu Sassaki: Os eventos foram paralelos e por coincidência. Eu tinha sido bolsista da ONU em 1966 e 1967, e, desde então, recebia as publicações da ONU. Otto Marques da Silva tinha sido funcionário da ONU em Nova York e também recebia muitas informações. Vivíamos trazendo novidade para o pessoal. Em 1979, quando começamos as reuniões, levamos todo o material da ONU e começamos a discutir: “Olha, 1981 vai ser o Ano Internacional das Pessoas Deficientes.” Nós já havíamos decidido criar o movimento quando, em 1979, soubemos que 1981 seria o Ano Internacional. Acho que, no Brasil, nós fomos pioneiros em divulgar o Ano Internacional, primeiro em São Paulo e, depois, no resto do País.
Na reunião de Brasília, criamos a Coalizão. Não saiu a Federação, e, sim, a Coalizão Pró-Federação de Entidades de Pessoas Deficientes. Em nome da Coalizão, fomos promovendo os eventos.

Entrevistador: A intenção era reunir todos os deficientes?

Romeu Sassaki: O que não havia muito eram os surdos. Naquela época, era muito difícil encontrarmos um intérprete da Língua de Sinais. Os surdos chegavam às reuniões e tentavam se comunicar. E nós também, porque queríamos que a Coalizão contemplasse todas as deficiências, mas havia mais cadeirantes, muletantes, cegos e poucos surdos. O ano de 1979 foi o marco histórico.

Em 1981, nós brigamos até com o presidente da República, João Baptista Figueiredo. Ele oficializou a Comissão Nacional do Ano Internacional das Pessoas Deficientes, mas não havia nenhuma pessoa com deficiência naquela comissão.

Entrevistador: José Gomes Blanco foi para a Comissão?

Romeu Sassaki: Sim, foi, porque preparamos um abaixo-assinado com muito barulho. Para começar, a presidente da Comissão Nacional do Ano Internacional, Helena Bandeira de Figueiredo, era uma pessoa sem deficiência. O Núcleo de Integração de Deficientes (NID) foi uma das entidades de pessoas com deficiência a exigir a inclusão de uma pessoa com deficiência na Comissão do Ano Internacional.

Entrevistador: Quem mais estava no NID?

Romeu Sassaki: Lia Crespo, Maria Cristina Corrêa (Nia), Francisco Crespo (Kico, irmão gêmeo da Lia), Ana Rita de Paula, Araci Nallin e eu, dentre outros.

Sobre a Constituinte.

Entrevistador: Vamos falar sobre a Constituinte?

Romeu Sassaki: Tivemos uma participação grande na Constituinte. Nós, do movimento, trabalhamos no ano de 1987 inteiro, em âmbito nacional. Acontece que o anteprojeto da Constituição, escrito pela Câmara Federal, já estava pronto em 1986, sem termos sido consultados. Se você comparar o anteprojeto de 1986 com a Constituição que veio a ser aprovada em 1988, vai ver a grande diferença, o quanto nós conseguimos interferir. O anteprojeto era muito fraco, com aquela visão antiga, paternalista, sobre pessoas com deficiência. Ali, realmente, nós crescemos. Tanto que constituímos uma comissão e fizemos várias reuniões para fechar nossas propostas para a Constituição. Cândido Pinto de Melo foi o coordenador aqui em São Paulo, Carlos Burle Cardoso, em Porto Alegre, e Messias Tavares de Souza foi nosso porta-voz no Congresso Nacional, em Brasília. Eu era o secretário, fazia as atas. Viajamos bastante. Fechávamos cada artigo e o entregávamos ao Messias, que ia para Brasília brigar com os deputados federais e os senadores. Todo mundo sabia que Messias não era apenas uma pessoa, ele era o representante do movimento. Foi, realmente, uma vitória muito grande.

Entrevistador: Vamos voltar um pouquinho ao Encontro de Brasília?

Romeu Sassaki: Em Brasília houve o 1° Encontro Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes. Mil pessoas se reuniram. Foi um Deus nos acuda! A Associação de Deficientes Físicos de Brasília (ADFB) realizou a organização local. Informaram-nos que o esquema de transporte local estava organizado. Mas, quando chegamos lá, cadê o transporte? Furou. Aí foi aquela história de pegar kombi, ônibus, etc., e não havia ônibus adaptado. E quem não tinha deficiência atuava como carregador: colocava a pessoa com deficiência no colo, para subir pelos degraus do ônibus, e depois acomodar a pessoa lá dentro. Como não havia hotel para receber mil pessoas, vários participantes ficaram hospedados em residências espalhadas por toda a cidade.

Entrevistador: O MDPD surgiu em 1980 ou em 1981?

Romeu Sassaki: A formação? 1980. Nós nos juntamos para estudar os temas do Ano Internacional das Pessoas Deficientes. No 1° Encontro Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes, em 1980, elaboramos os documentos.

Desde o começo, fazia parte da nossa postura política não excluirmos ninguém. Mas, naquela época, não apareceu ninguém com deficiência intelectual. Os pais protegiam demais os filhos com deficiência, não os deixavam sair para nada. E as entidades que atendiam pessoas com deficiência intelectual queriam trabalhar sozinhas, sem fazer parte do Movimento. Tanto que as APAEs e as Pestalozzis sempre tiveram a luta delas; elas não se interessavam pela nossa luta, e nós também não nos interessávamos pelo movimento delas. Nossos respectivos trabalhos eram feitos separadamente, mas sem brigas, sem animosidades. Simplesmente, cada entidade preferiu seguir o próprio caminho. Mas isso mudou aos poucos. Já em 1981, por exemplo, as entidades especializadas no atendimento a pessoas com deficiência intelectual fizeram parte das reuniões do Ano Internacional.

As vinhetas da Rede Globo para o Ano Internacional das Pessoas Deficientes – 1981.

Conseguimos mudar o curso da história do movimento. Em 1980, brigamos com a Rede Globo, que era considerada a dona absoluta dos meios de comunicação. Ninguém questionava a Globo, mas nós questionamos. O Ano Internacional foi em 1981, mas no início de 1980 a Globo nos procurou dizendo que queria fazer uma série de vinhetas de 30 segundos para passar em cada intervalo do show do cantor Roberto Carlos. Naquela época, Roberto Carlos já fazia o tradicional show de fim de ano. A Rede Globo já tinha tudo pronto, as cenas, onde filmar, quem filmar, o que falar. Eles nos procuraram não para perguntar se concordávamos, se a abordagem estava correta. Não! Fomos procurados porque eles queriam que indicássemos pessoas com deficiência para serem filmadas. Mas, aí, olhamos o projeto e vimos as barbaridades que havia e dissemos que estava tudo errado, precisávamos melhorar aquele roteiro. Brigamos muito, mas a Globo resistiu e não quis saber de acatar nossas sugestões.

A Globo, assim como o jornalismo em geral da época, queria mostrar “sangue”: filmar o “defeito” físico, o “horror das feridas” da perna, do braço, etc. Eles queriam mostrar isso para chocar. A coordenadora do projeto, Virgínia Cavalcante, dizia: “Temos de chocar o público para conscientizá-lo!” E nós dizíamos: “Não, de jeito nenhum. Não concordamos com isso. Essa tática de chocar o público com o objetivo de sensibilizar para a questão é errada; não queremos fazer isso. Queremos conscientizar e informar o público sobre nossas reivindicações, sobre o que queremos que mude na sociedade. Essas vinhetas vão reforçar ainda mais aquela visão de coitadinho, ‘olha que coisa triste que está ali’. Nós não queremos mais isso!” A Globo não nos respeitou e filmou do jeito que ela queria.

O Ano Internacional foi muito intenso. Tínhamos atividades frequentemente. Por exemplo, em julho de 1981, em São Paulo, aconteceu um fato inédito. O MDPD conseguiu que o secretário Municipal de Cultura, Mário Chamie, autorizasse a construção de uma rampa provisória, feita de madeira, na entrada do Teatro Municipal de São Paulo. Embora fosse provisória, aquela rampa representou uma conquista. Para nós, essa foi uma vitória porque foi a única maneira de as pessoas com deficiência poderem entrar e assistir, como todo mundo, a uma apresentação do maestro Isaac Karabtchevsky. O ator Renato Consorte foi um dos nossos grandes apoiadores. Foi ele quem nos apresentou ao secretário para convencê-lo a fazer a rampa.

Também realizamos uma feira de demonstração de barreiras e acessibilidades, na Praça Roosevelt. Foi um evento para o público em geral sentir o que eram barreiras e o que era acessibilidade. Construímos caminhos com degraus e desníveis, providenciamos várias cadeiras de rodas para as pessoas experimentarem a dificuldade de estar em uma cadeira de rodas diante de degraus. A altura de orelhão, a altura de pia, do espelho: tudo tinha amostras do errado e do certo.

Entrevistador: Que instituições do movimento atuaram mais durante o Ano Internacional das Pessoas Deficientes? Você falou do MDPD...

Romeu Sassaki: O MDPD não era uma organização propriamente dita, era um espaço onde várias organizações atuavam em conjunto. Uma reunião do MDPD significava o momento em que se reuniam membros do Núcleo de Integração de Deficientes (NID), da Associação de Integração de Deficientes (AIDE), da Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes (FCD), da Associação de Assistência ao Deficiente Físico (AADF), da Sociedade dos Deficientes Visuais do Brasil (SODEVIBRA), da Associação Brasileira de Deficientes Físicos (ABRADEF), da Associação de Deficientes Visuais e Amigos (ADEVA), do então Movimento de Reintegração dos Hansenianos (Morhan), dentre outros.

A discussão sobre os direitos: o conceito de inclusão.

Entrevistador: Nessa articulação das pessoas do movimento e da Coalizão, havia atritos?

Romeu Sassaki: Sem dúvida alguma. Naquela época, “integração” era a palavra de ordem. No fundo, a palavra e o conceito de “integração” eram entendidos de uma forma por algumas entidades e de outra forma pelas demais. Assim, para alguns membros, a integração significava inserir na sociedade apenas as pessoas com deficiência que fossem “encaixáveis”, aceitáveis, nos poucos espaços “concedidos” pela sociedade excludente. Para outros, a integração já tinha o sentido de “inclusão”, ou seja, mudança dos sistemas sociais comuns para torná-los acessíveis para todas as pessoas com deficiência.

Na época, as entidades se dividiam em: entidades de, entidades para e entidades sobre. Havia várias entidades sobre: a Rede Saci, o Disque-Deficiência, o CEDRIS, etc. E, pela primeira vez na história do Brasil, especialmente no Estado de São Paulo, estávamos juntando e checando ideias, então houve algumas polêmicas por causa daquela visão antiga, caritativa, assistencialista, que as próprias associações também tinham. Essa visão passava mensagens subliminares, tais como: “Olhe, sociedade; olhem, governos: somos pobres coitados, dá isso e aquilo para nós.” Era pedir, como esmola. Mas uma nova mentalidade estava nascendo, e aí “quebrava o pau”. Estávamos discutindo um assunto, os de mentalidade antiga falavam uma coisa e os de mentalidade nova falavam outra. E os de mentalidade antiga não entendiam: “Mas como? Nós temos direito de receber tudo de graça, o governo tem de dar, a sociedade tem de dar.” E os de mentalidade nova: “Não é assim, não. Como é que fica a dignidade? Onde fica a consciência dos direitos, a consciência política? Como é que fica o nosso dever? Não é somente o dever do governo e o da sociedade, é o nosso também. Não somos somente titulares de direitos, também temos deveres e responsabilidades.” Isso era muito difícil de administrar naquelas reuniões.

Hoje é comum falarmos em dignidade, mas, naquela época, a dignidade era algo utópico, abstrato, não tinha nada a ver conosco. O problema era a fome, a pobreza, a falta de tudo. Não havia dignidade coisa nenhuma. Aliás, a própria dureza da vida encobriu a dignidade. Algumas pessoas pediam dinheiro sem sentir vergonha. Por outro lado, muita gente, mesmo naquela época, não pedia dinheiro porque sentia vergonha de pedir. Ensinar dignidade é uma coisa difícil. Aliás, naquela época não se usava a palavra “cidadania”. Essa palavra surgiu na década de 1990.

Como o MDPD atuava muito na cidade de São Paulo, nós realizamos o Fórum de Pessoas com Deficiência, que abrangia todo o Estado de São Paulo. Isso também foi uma novidade. A primeira reunião ocorreu 20 de maio de 1989, quando começou o Fórum. Nessa época, era tudo com máquina de datilografia. Um horror! Tínhamos de usar o branquinho para apagar os erros e datilografar as palavras corretas.

Depois de cada reunião, eu fazia uma sinopse das discussões; não era propriamente uma ata. O importante para o movimento era que essas documentações fossem xerocadas e todo mundo levava uma cópia para sua casa para estudar, discutir com alguém, apresentar em suas associações, etc., e, assim, as ideias iam se formando, se alinhavando, se aperfeiçoando. Uma coisa é você ficar falando e falando, mas as falas se perdem. Outra coisa é documentar esse processo para podermos saber qual princípio estamos defendendo, qual é a nossa filosofia. Se não houvesse essa clareza, teríamos ficado no simples ativismo: fazer, fazer, fazer: eventos, palestras, passeatas... Muito ativismo sem conteúdo conceitual. Por isso foi importante o conteúdo ideológico, político e filosófico, registrado em nossas súmulas.

Foram essas documentações que nos ajudaram a ter consciência de para onde estávamos caminhando, do que estávamos reivindicando e do que estava mudando. Que tipo de prática social condenamos no início? Por que o movimento surgiu? Todo movimento surge para combater aquilo que estava acontecendo e que os novos ativistas não queriam mais. Precisávamos ter clareza, de fato, do que estávamos combatendo e por que estávamos combatendo. O que aquela coisa que estávamos combatendo significaria? Que implicações teriam aquelas coisas antigas para o futuro? O que esperávamos e que tipo de sociedade queríamos?
Isto aqui (a sistematização) foi muito bom porque, a partir de um rascunho bem tosco, que iniciou o processo, debatemos muito e no final aprovamos a Carta de Princípios, onde ficou tudo claro: em que documentos estávamos nos baseando, quais direitos reivindicávamos, que medidas especiais – nunca direitos especiais –, quais eram as ações de conscientização, observância, atualização. Aqui também há um histórico de como nasceu o Fórum – nasceu na capital paulista e depois o levamos para outras cidades. Elaboramos o Programa do Fórum para a década de 1990. Tudo isso é fruto de debates, não saiu da cabeça de uma pessoa. Era uma batalha para a gente fechar estas coisas: ônibus adaptados ou acessíveis, reivindicações, eliminação de barreiras atitudinais, o Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência (21 de setembro), etc.

Nós éramos muito procurados pela imprensa. A imprensa se sentia igual à sociedade: assustada. O que está acontecendo? Por que esse “bando de aleijados” está brigando? Por que eles estão reunidos? O que eles estão discutindo? O que eles querem? E a imprensa estava sempre em cima. Foi muito bom para nós e também para a imprensa: todos nós aprendemos muito.

Entrevistador: Durante a década de 1980, surgiram várias organizações: ONEDEF, FEBEC, FENEIS, MORHAN...

Romeu Sassaki: A Coalizão existiu, foi aquele movimento em que nos unimos e fizemos juntos várias coisas. Mas chegamos à conclusão de que não queríamos uma federação. O que é uma federação? É uma organização formal com uma diretoria, onde as federadas – as organizações que vão pertencer à federação – se reportam a essa diretoria. Existe corporativismo, estrutura vertical, hierárquica (de cima para baixo, de baixo para cima). E não queríamos essa organização, queríamos uma coisa mais ágil.

Então, surgiu a Organização Nacional de Entidade de Deficientes (ONEDEF) – e, aí sim – só para pessoas com deficiência física. Depois surgiu a da hanseníase, a dos cegos e a dos surdos. Não que houvesse uma separação, mas achamos que poderíamos nos organizar nacionalmente por tipo de deficiência. Mais uma vez a deficiência intelectual ficou meio de fora. Não que tivéssemos abandonado, excluído, rejeitado pessoas com deficiência intelectual. Nada disso. Apenas não houve uma aproximação de ambas as partes. Nem daqui para lá e nem de lá para cá. Não houve. Mas as portas estavam sempre abertas e até apareceram algumas pessoas e entidades. A APAE aparecia, a Pestalozzi aparecia, mas não nos entrosávamos.

Entrevistador: E como foi a articulação entre elas?

Romeu Sassaki: A articulação foi por meio de grandes eventos. Por exemplo, em 2000, de 3 a 6 de setembro, em Recife, Pernambuco, foi realizado o Encontrão 2000: Século 21 – O Século da Diferença. Ocorreu, também, o 11º Encontro Nacional de Entidades de Deficientes Físicos, um evento nacional que elegeu a nova diretoria da ONEDEF. A então presidente, Ana Maria Barbosa, estava saindo e transferiu o cargo para o novo presidente, Gerônimo Ciqueira da Silva, que depois foi eleito deputado federal. Ele era de Alagoas, Maceió; foi um grande batalhador.

Entrevistador: Havia uma discussão de como garantir direitos antes das discussões próprias da Constituinte?
Romeu Sassaki: Isso foi uma parte que nos ocupava muito. Discutíamos não juridicamente, embora tivéssemos alguns advogados no meio. Às vezes, conseguíamos pegar um projeto de lei em tramitação e mexíamos nele. Mas, muitas vezes, fomos surpreendidos por leis. Quando ficávamos sabendo, a lei já estava aprovada. E, aí, a gente passava a discutir para “apagar um incêndio”...

Por exemplo, educação era um tema interminável. Aquela velha discussão: se as pessoas deveriam estudar separadamente, em uma escola especial, ou junto com todo mundo em escolas comuns – o que seria hoje a inclusão escolar. Na época, isso dava muitas brigas, muita polêmica. Isso mexia com uma questão de direitos: as pessoas com deficiência têm direito a uma educação inclusiva, junto com todo mundo? Ou o direito de estudar em uma escola especial? Realmente, havia muitos debates que iam mexer com a legislação. Geralmente, a lei era mais para uma educação separada, escolas separadas e até classes especiais. Mas quem fez a lei? O deputado estadual, o federal, o vereador, o senador? Não. Eles só finalizaram o processo de elaboração. Alguém, alguma entidade, levou para um parlamentar e lhe disse: “Olhe, deputado, queremos uma lei assim. Vocês poderiam transformar isso juridicamente em uma lei?” E entre as pessoas que levavam as sugestões de lei, havia de tudo: pessoas que ainda pensavam de maneira antiga, favoráveis à separação, e pessoas que já pensavam em inclusão.

Nesse sentido, em 1980, o NID foi a única entidade que destoava das entidades de pessoas com deficiência. Por quê? Porque o NID defendia, por exemplo, educação em escolas comuns para pessoas com deficiência. Isso, em 1980! A Declaração de Salamanca é de 1994 e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência é de 2006. Mas já em 1980 o NID, nas reuniões locais, estaduais, regionais e nacionais, falava, escrevia e distribuía textos sobre a “integração em escolas comuns”. A palavra “integração” já tinha o sentido de “inclusão”. O NID destoava porque defendia que pessoas com deficiência deveriam estudar junto com pessoas sem deficiência desde pequenas. Defendia naquela época que a diretoria, e a própria diretoria do NID era um exemplo, poderia ser composta por pessoas com e sem deficiência. Nem precisei defender isso porque as próprias pessoas, como Araci Nallin, Lia Crespo, Ana Rita de Paula e outras, queriam que pessoas sem deficiência fizessem parte da diretoria do NID. Não viam problema nenhum. E em todas as outras entidades só havia pessoas com deficiência em todos os cargos: presidente, vice-presidente, tesoureiro, etc., e estava escrito no Estatuto que a pessoa precisava ter deficiência para ocupar cargos de diretoria. As pessoas sem deficiência poderiam ser colaboradores, participar das reuniões, opinar, participar de passeios e seminários, mas não fazer parte da diretoria. Por isso o NID inovou.

No trabalho, por exemplo. Várias entidades, naquela época, em vez de batalhar para mudar o mundo do trabalho para que este fosse acessível, tinham a seguinte visão: Aqui está o mercado de trabalho. As empresas e os órgãos de governo, como empregadores, rejeitam e discriminam pessoas com deficiência para trabalhar. No mundo inteiro foi assim e no Brasil, também. As entidades, tanto de como para, começaram a defender a seguinte solução: “Já que o mercado de trabalho é excludente, já que o mercado de trabalho não quer contratar pessoas com deficiência, nós queremos, criamos oficinas de trabalho protegidas para que pessoas com deficiência possam trabalhar.” Isso entrou na lei, inclusive está no Decreto n° 5.296, de 2004. É terrível. Uma visão tão antiga continuou em um decreto de 2004.

Essas entidades também defendiam o seguinte: já que a empresa não nos quer, vamos obrigá-las a nos fornecer serviço. Então, a empresa fornecia serviço, uma espécie de subcontrato, para que as pessoas com deficiência pudessem executar aqueles serviços dentro das próprias entidades, de e para pessoas com deficiência. Então, veja a visão das pessoas. As pessoas se conformavam em ter isso, já que o mercado de trabalho era preconceituoso e discriminatório. Criaram situações de trabalho fora do mercado de trabalho, como uma alternativa.

Havia muito disso: soluções alternativas. Uma visão com a qual o NID não concordava já naquela época. Como soluções alternativas? Por quê? Por exemplo, o mercado de trabalho está aqui, todo bloqueado, cheio de barreiras: por que nós, ligados às pessoas com deficiência, precisamos nos sentir acuados por esse mundo do trabalho preconceituoso e fechado? Só porque ele é preconceituoso vamos nos afastar desse mercado e fazer um mundo à parte? Não! Precisamos é mudar a cabeça dessas pessoas, mudar essa visão retrógrada e antiga. Que elas tenham respeito pela pessoa com deficiência. Por que o mercado de trabalho sempre foi fechado? Porque a ideia que eles tinham sobre pessoas com deficiência era de que elas não trabalham direito, que faltam ao serviço, que ficam doentes toda hora, que têm problema de transporte e sempre vão chegar atrasadas, que não produzem tanto quanto quem não tem deficiência, etc.
Além disso, achavam que deficiência causa um impacto constrangedor, causa uma reação negativa no público. Então, vamos mudar tudo isso! Nossa briga – e aí não coloco só o NID, mas também todas aquelas entidades que começaram a surgir na década de 1980 – era para mudar a sociedade. Ficarmos acuados é bom para aqueles que não nos querem lá na sociedade maior e nos obrigam a criar o nosso mundinho, separado, com ônibus, oficina de trabalho, escola, tudo exclusivamente para pessoas com deficiência...

Entrevistador: Você acha que o movimento sofreu uma retração?

Romeu Sassaki: Não. Não houve recuo. Houve avanços com dificuldades. Houve avanços com vários ritmos de velocidade, uns mais lentos, outros mais rápidos. Mas sempre viemos avançando, sim.
O que acontece, agora, é que nós ainda estamos sem atingir a maioria das pessoas com deficiência. O movimento, como cabeça, desbravador de fronteiras, sempre cresceu, e estamos cada vez mais fortes, ali na crista da onda, na fronteira mais avançada. Mas, desde o passado até hoje, estamos sem atingir a maioria das pessoas com deficiência. Milhões de pessoas com deficiência ainda estão vivendo como “na era da caverna”, ainda estão com problemas básicos de falta de atendimento de saúde, de remédio, de cirurgia, de reabilitação, de uma muleta, de um par de óculos. Há milhões de pessoas que nem isso têm. Sabemos disso muito bem.

Então, o movimento não regrediu. O que aconteceu é que, ao longo do tempo, houve estagnações, paramos de brigar. Mas desde que os centros de vida independente surgiram no Brasil a partir de 1986, eles estão dando certa dor de cabeça para a sociedade.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Entrevistador: Fale sobre o seu envolvimento com o Movimento de Vida Independente.

Romeu Sassaki: Vira e mexe, nós, do Movimento de Vida Independente, estamos impactando em vários lugares e situações. Estamos dando um bocado de trabalho para as empresas, para o governo, para a família, para a sociedade, para um monte de gente. Naquilo que o movimento tem de mais avançado em mentalidade, em alcance conceitual e filosófico, nós crescemos, estamos aplicando e divulgando. Um exemplo: os projetos de lei para criar um estatuto da pessoa com deficiência. Nós, do Movimento de Vida Independente, chamamos de os “famigerados projetos de lei do Estatuto da Pessoa com Deficiência” porque eles estão na contramão da inclusão, por isso, não queremos tal estatuto. O Estatuto é uma instituição típica de pessoas que ainda vivem em situação de tuteladas: os indígenas, as crianças e adolescentes, os idosos adoentados e fragilizados, e não para pessoas com deficiência, que, como segmento, já conquistaram patamares de cidadania, de direitos, de empoderamento e de equiparação de oportunidades. Não queremos mais tutela de jeito nenhum! E o Estatuto é um instrumento de tutela.

Esses projetos de lei não morreram. O processo está acontecendo, embora tenha se estagnado em diversas ocasiões. Ultimamente, a pausa foi provocada pelo processo de adoção e ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. E como a Convenção, no Brasil, foi ratificada com equivalência de emenda constitucional, todas as leis (atuais e futuras) pertinentes a pessoas com deficiência deverão estar de acordo com os artigos estabelecidos na Convenção. Houve, então, o seguinte dilema: ou se muda tudo o que está escrito nos projetos de lei para contemplar o que a Convenção determina, ou se esquece o Estatuto. De duas, uma. Mas, paradoxalmente, para que serve um estatuto que vai reproduzir o que está na Convenção, se a própria Convenção já faz parte da nossa Constituição Federal? Isso, sem considerar que, em primeiro lugar, um estatuto não se justifica hoje por motivos de cidadania explicados na minha resposta anterior.

As secretarias para pessoas com deficiência.

Entrevistador: Quais os outros marcos do movimento que você acha que foram fundamentais, depois de 1981, para a conquista de direitos?

Romeu Sassaki: A conquista dessa visão de cidadania já foi o máximo e é um parâmetro para qualquer coisa. Mas nós temos, ainda, um problema. Vou recordar a história: antigamente, não existia o Movimento das Pessoas com Deficiência, mas já havia instituições para pessoas com deficiência – centros de reabilitação, de tratamento, etc. Eram profissionais servindo uma clientela. As pessoas com deficiência como clientela. E a sociedade herdou as instituições que existiam antigamente e as novas que surgiram depois e que ainda praticam muito daquela visão: “Nós somos os especialistas, nós entendemos do que essas pessoas com deficiência precisam.” Essa foi uma postura sempre assim, de cima para baixo. E nós, hoje, ainda temos muito dessa atitude, dessa mentalidade. Eu mesmo, como especialista em reabilitação profissional, tinha essa mentalidade, essa atitude, no início da década de 1960. A partir de 1971, ano em que organizei e ministrei o primeiro Curso de Preparação de Conselheiros de Reabilitação do Brasil, comecei a trocar essa visão e atitude para a abordagem centrada no cliente, não diretiva, rogeriana, ou seja, aquela baseada na perspectiva adotada pelos clientes. Esta nova prática me levou a defender a necessidade de ouvirmos as próprias pessoas com deficiência.

Agora, vou comentar sobre outro marco no contexto da atenção às pessoas com deficiência. Estão surgindo secretarias de governo específicas para tratar de assuntos de pessoas com deficiência. Aqui no Estado de São Paulo, temos a Secretaria Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência, que é um órgão do Governo e não da sociedade civil. As secretarias específicas estão começando a surgir também nos governos municipais. Há 30 ou 40 anos, um órgão específico teria sido necessário em razão dos contextos ideológico, social, cultural e político da época. Há dois problemas nesse marco. O primeiro é de cunho conceitual e consiste em saber se em pleno século 21 cabe a existência de um órgão específico, separado, para tratar exclusivamente dos assuntos que dizem respeito à pessoa com deficiência. Essa é uma questão muito séria: uma secretaria específica estaria de acordo com a sociedade que a gente quer? Isso está de acordo com o espírito da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência? Acho que não. Quero que todas as secretarias do Governo cuidem dos assuntos das pessoas com deficiência pela ótica da especificidade de cada secretaria. Quero que o Governo inteiro – gestores, diretores, técnicos, funcionários administrativos – entenda e fomente a importância de cada secretaria na implementação de medidas que atendam às necessidades da pessoa com deficiência. Esta é a nossa briga. Este é o primeiro problema, se deve ou não haver uma secretaria específica. No nível federal, seria o caso de perguntar se é necessário existirem o Ministério das Pessoas com Deficiência, o Ministério dos Indígenas e outros.

O outro problema: havendo as secretarias específicas (porque, queiramos ou não, elas estão surgindo), quem deve ocupar a titularidade? Uma pessoa com deficiência ou sem deficiência? Vamos colocar uma pessoa com deficiência, obrigatoriamente, ou deixar em aberto para que pessoas mesmo sem deficiência possam ocupá-la? Isso não está resolvido. Mas nossa posição é a seguinte: no caso de ser uma pessoa com deficiência, ela deve ser do movimento, deve ser uma pessoa que tenha aprendido, convivido e faça parte de toda a vivência das necessidades das pessoas com deficiência. Ou seja, essa pessoa, além de ter deficiência, deve ser também uma pessoa vivida no movimento. Essa pessoa seria ideal. Agora, se for uma pessoa sem deficiência, mas que tenha vivenciado no movimento e tenha sido aprovada por pessoas com deficiência do movimento, ela também poderia ocupar esse cargo. Não somos tão simplistas a ponto de dizer que, se é uma secretaria específica para pessoas com deficiência, o titular só pode ser uma pessoa com deficiência. Precisamos considerar o seguinte: quem é essa pessoa, com deficiência ou sem deficiência? É uma pessoa com experiência no Movimento de Pessoas com Deficiência? É uma pessoa, no caso de ser sem deficiência, que tem a aprovação das pessoas com deficiência para representá-las? Resumindo, não basta ter uma deficiência, e o fato de não ter deficiência não é um fator eliminatório.

O Movimento de Vida Independente e os CVIs.

Entrevistador: Como é sua participação nos CVIs?

Romeu Sassaki: O primeiro Centro de Vida Independente no mundo surgiu em 1972, na cidade de Berkeley, Califórnia, Estados Unidos. O CVI-Berkeley começou com 10 pessoas: oito com deficiência bem severa e duas sem deficiência. No Brasil, o primeiro CVI surgiu no dia 14 de dezembro de 1988, no Rio de Janeiro (CVI-Rio).

Na época em que surgiu o CVI-Berkeley, eu estava estudando em uma universidade estadual, nos EUA, e que poderia ser considerada inclusiva já na década de 1970. Foi enorme o impacto que se deu com a filosofia de vida independente, que foi totalmente inesperada para a época. O conceito e as reivindicações do recém-inaugurado movimento de vida independente chegaram rapidamente às faculdades pelo país inteiro. Na faculdade onde eu estudava, fiz uma pesquisa nacional sobre os cursos de aconselhamento e administração de reabilitação. Descobri que eles estavam mudando o enfoque da formação dos alunos, introduzindo a questão da vida independente nos currículos e estágios. E, a partir da década de 1970 aos dias de hoje, o Movimento de Vida Independente e as faculdades vêm realizando um encontro nacional anual de CVIs. Então, em 1972 tomei conhecimento do conceito e dos serviços de vida independente. Quando surgiu, em 1988, o CVI do Rio, fiquei muito feliz; “Beleza! Nossa Senhora, aquele movimento que eu conhecera 16 anos atrás, agora, estava acontecendo no Brasil!” Em outubro de 1991, fui a Oakland (sede do World Institute on Disability), cidade vizinha a Berkeley, a fim de participar da Conferência Estadual sobre Vida Independente, cujo tema central foi “Vida Independente: preparação para o século 21”, e lá tomei melhor conhecimento dessa nova filosofia, inclusive conversando com líderes como Phil Draper, um dos fundadores do CVI-Berkeley, e o convidado internacional Adolf Ratzka.

Em 1992, Rosangela Berman Bieler, a principal fundadora do CVI-Rio, me convidou para ser diretor executivo. De minha parte, levei aquelas ideias aprendidas em 1972 e 1991! Claro que tive de mudar de vida e ir morar no Rio de Janeiro. Fiquei lá um ano e meio. Passei o cargo para o psicólogo Ray Pereira e voltei para São Paulo. Em 1995, aconteceu o DEF-Rio. Foi muito importante, um encontro que era para ser de âmbito ibero-americano, mas acabaram vindo representantes do Japão, da Europa.

Entrevistador: Esse foi o segundo DEF-Rio, porque o primeiro foi em 1992.

Romeu Sassaki: Sim. Fui palestrante no de 1992 e participante pleno no de 1995. Ao voltar dos Estados Unidos em 1991, formei três grupos de estudo em São Paulo: o Grupo de Vida Independente (GVI), o Grupo de Reabilitação Simplificada (GRS) e o Grupo de Emprego Apoiado (GEA).

Entrevistador: Eram as reuniões que aconteciam na Instituição Beneficente Nosso Lar?

Romeu Sassaki: Algumas aconteceram lá porque Fabiano Puhlmann Di Girolamo foi um dos que convidei e fez parte do GVI e do GEA. Aliás, várias pessoas fizeram parte dos três grupos, porque eu convidava determinadas pessoas para cada grupo e algumas pessoas tinham perfil para dois ou três grupos.

A ideia do Grupo de Vida Independente (GVI) era a de ser um grupo de estudo, porque o CVI é uma organização não governamental (ONG) que vai prestar serviços de capacitação à comunidade – principalmente às pessoas com deficiência, mas também às pessoas sem deficiência, familiares, etc. Já o GVI era um grupo de estudo.

Quando o GVI terminou o seu objetivo de estudar, criamos o CVI-Araci Nallin, para fazer tudo aquilo que havíamos estudado no GVI. Também ajudei na criação do CVI-Maringá e do CVI-Campinas. Ajudar no sentido de levar as primeiras informações, participar das primeiras reuniões, fazer uma palestra, dar um curso.

Desde o início, fiz parte do CVI-Araci Nallin como colaborador, nunca como diretor. Participava das reuniões e das atividades. Agora, em 2008, estava terminando a gestão da Flávia Maria de Paiva Vital e foi marcada uma assembleia para formar uma nova diretoria. Marco Antonio Ferreira Pellegrini formou uma chapa: ele seria o presidente, eu seria o diretor de Capacitação e Consultoria e Flávia Maria, diretora de Relações Interinstitucionais. A chapa foi eleita e Marco atuou por cerca de quatro meses, quando então precisou afastar-se porque ele acabara de ser convidado para atuar na Secretaria Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência, com a Dra. Linamara Rizzo Battistella. Assim, Renato Laurenti foi eleito o atual presidente do CVI-Araci Nallin.

Atualmente temos 11 CVIs. Já chegamos a ter 23, mas alguns foram fechando, e esses 11 não estão livres de fechar. Costumo dizer que o CVI dos Estados Unidos, que foi o primeiro do mundo, e o CVI-Rio, que foi o primeiro da América Latina, surgiram na época e na hora certas para agir e transformar o mundo. E com essa ideia, espelhados no CVI-Rio, surgiram os outros CVIs do Brasil. Só que alguns surgiram muito afoitamente: “Que bacana, vamos abrir um CVI.” Tanto que de 23 sobraram 11.

Abrir um CVI só porque é bacana e bonito não é o caminho. O caminho é: somos necessários? Estamos capacitados, preparados para fazer o que o CVI deve fazer? O CVI não pode ser como as antigas associações onde as pessoas se juntavam para resolver problemas próprios, problemas pessoais. O CVI é o inverso: vamos nos unir para servir as pessoas de fora. Essas pessoas podem vir para serem atendidas por nós e também nós vamos lá fora para ajudar localmente as pessoas com deficiência que não têm condições para comparecer ao CVI.

Um CVI não é um mero ajuntamento de pessoas. É prestar serviço com a filosofia de vida independente. A tônica de um CVI não é a das entidades tradicionais, nem de, nem para e nem sobre. A tônica principal que caracteriza um CVI e o diferencia dos outros é o empoderamento, que está embasado em três aspectos: fazer escolhas, tomar decisões e assumir as consequências dessas decisões e escolhas. Seguimos à risca o lema “Nada sobre Nós, sem Nós”.

Por exemplo, emprego. Você quer um emprego. Qual emprego? Você tem os seus sonhos, os seus projetos e gostaria de ser tal coisa. Como o CVI pode ajudar você? Você decidiu que tipo de trabalho gostaria de exercer, e nós sabemos que esse tipo de trabalho existe em três empresas. Nós apresentamos você às empresas A, B, e C, e você escolhe, com base em uma série de parâmetros seus. Você fez sua escolha, tomou a sua decisão. No processo, você também pode escolher fazer o contato com a nossa carta de apresentação, ou que alguém vá junto com você ou que você vá sozinho. Você precisa exercer esse direito de pensar, de escolher. Quando você fizer isso, você vai se sentir poderoso e com o controle da situação. Você está decidindo, você sente que tem um espaço onde pode se colocar, pode dizer o que gostaria de fazer ou ter.

Esse tipo de exercício faz a pessoa crescer como cidadã, como pessoa por inteiro. Essa é uma abordagem típica de um CVI. O CVI tem essa atitude de ajudá-lo a ser você mesmo, a estar no controle da situação. Queremos a pessoa com deficiência em primeiro lugar porque o CVI existe para isso. Mas também queremos que os familiares, os colegas e outros que não têm deficiência absorvam esse estilo de vida, que se chama “estilo de vida independente”. Queremos um mundo no qual as pessoas tenham esse espaço, e não esse mundo tradicional que diz assim: “Você vai fazer tal coisa, vai trabalhar nisso, seu horário é este”. Um mundo onde tudo é imposto. E o mais engraçado é que é imposto para o seu bem, para o seu benefício. Mas não queremos isso! Uma das líderes do movimento de vida independente norte-americano, a jurássica Judy Heumann, escreveu a seguinte frase: “Vida independente não é você mesmo fazer as coisas; é você estar no controle de como as coisas são feitas”.

E vida independente não significa que nós não dependemos de ninguém. Quando defendemos vida independente, não estamos dizendo que ajudamos as pessoas com deficiência a não dependerem de ninguém para nada. Que absurdo! Tendo ou não uma deficiência, somos seres humanos e dependemos uns dos outros. Somos seres sociais. Então, a independência é ter o controle, poder tomar decisões. Podemos não conseguir fazer (falta de autonomia), mas estamos no controle (uso da independência). Eu posso decidir quem vai me ajudar e como ele vai ajudar: você ou a outra pessoa. Independência nasce das escolhas, das decisões e, também, das consequências disso.

Desafios futuros.

Entrevistador: Quais são os desafios futuros do movimento?

Romeu Sassaki: Temos um colossal desafio quantitativo, porque o qualitativo já conquistamos e estamos sempre de olho nas constantes ameaças feitas ao qualitativo. O qualitativo é essa coisa do nível, do patamar, da Convenção da ONU, da autonomia, dos direitos, da qualidade de vida, do “Nada sobre Nós, sem Nós”. Agora, na quantidade estamos mal: como atender mais pessoas e, se possível, todas as pessoas? Já sabemos quais serviços prestar, mas queremos prestá-los a milhões de outras pessoas com deficiência. Queremos que surjam mais CVIs. Precisamos é de estratégias para capacitar, localmente, vários líderes em todos os Estados, lideranças que possam criar CVIs. Para isso existe, nos EUA, um órgão de representação nacional que se chama Conselho Nacional de Vida Independente, fundado em 1982. No Brasil, por enquanto, o Conselho Nacional dos Centros de Vida Independente (CVI-Brasil) representa 11 CVIs.


Do livro: "História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil".
Reprodução autorizada, desde que citada a fonte de referência.
Distribuição gratuita. Impresso no Brasil.
Copyright 2010 by Secretaria de Direitos Humanos.
Tiragem: 2.000 exemplares - acompanhados de cd-rom com o conteúdo em OpenDOC, PDF, TXT e MecDaisy - 1ª Edição - 2010, 50 exemplares em Braille.

Este livro faz parte do Projeto OEI/BRA 08/001 - Fortalecimento da Organização do Movimento Social das Pessoas com Deficiência no Brasil e Divulgação de suas Conquistas.

Referência bibliográfica :
Lanna Júnior, Mário Cléber Martins (Comp.). História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2010. 443p. : il. 28X24 cm.
Ficha Catalográfica:
H673 História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil / compilado por Mário Cléber Martins Lanna Júnior. - Brasília: Secretaria de Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2010. 443p. il. 28x24 cm.

Ficha Técnica da Entrevista:
Entrevistadores: Mônica Bara Maia e Deivison Gonçalves Amaral.
Local: São Paulo-SP.
Data: 5 de fevereiro de 2009.
Duração: 3 horas e quarenta minutos.