A Imagem dos Cegos na Sociedade.

02/08/2007 - Marta Gil.

A Imagem dos Cegos na Sociedade.

Marta Gil.

Caros amigos Sandra, António e MAQ, boa noite.

Inventamos uma modalidade na coluna "Diálogos", do "Portal Planeta Educação": juntamos textos escritos por pessoas diferentes sobre um mesmo tema. As vezes os textos concordam entre si, as vezes não. A "conversa" fica viva e estimulante. Em junho, vocês três trocaram idéias muito interessantes sobre a imagem social e as representações sobre as pessoas com deficiência visual. Guardei as suas mensagens (coladas a seguir) e penso que os internautas gostariam muito de ler suas opiniões. Gostaria de consultá-los, para saber o que acham e se concordam. Há uma diferença entre trocar idéias em uma lista fechada e divulgá-las em uma coluna. Um abraço,
Marta Gil.

António Silva - Portugal - 22/06/2007 / 05:45.

Boas,

Provavelmente, antes de pensarmos em sensibilizar a sociedade para as questões de acessibilidade, teremos de alterar a nossa própria imagem perante essa sociedade. E por aí as coisas ainda estão muito mal.

O cego ainda é o pedinte, o coitadinho que está numa esquina a tocar acordeão ou, caso não tenha dotes para a música, de mão estendida, lamentando a sua sorte. Infelizmente tenho constatado que esta imagem não está em vias de desaparecer, muito pelo contrário, o número de cegos realmente pedintes aumenta dia para dia.

Quando se consegue vencer este estigma passa-se a ser apresentado como um macaquinho de circo, com espaço garantido nos horários nobres da TV. Nos últimos tempos têm aparecido cegos que são locutores de rádio, que fazem mergulho, que jogam a bola, que são capazes de dar banho aos seus filhos, que usam um PC, que editam livros, enfim, um rol de habilidades que espantam o mundo.

É esta a imagem que temos e transmitimos à sociedade, não fazendo muito esforço por a alterar. Muito pelo contrário, fazemos figuras tristes em concentrações, ajuntamentos e outras aglomerações, passando uma imagem de depravados, bêbados, mal educados, irresponsáveis, inúteis e incapazes.

Pronto, já podem começar a atirar pedras!
António Silva

Sandra Estêvão Rodrigues - Portugal - 22/06/2007 / 07:28

Olá, António e todos.

Acontece que mudar representações sociais de alguma coisa é tarefa difícil e muito demorada. Apesar de cada um de nós, pessoas com deficiência, devermos fazer o possível por essa mudança, nem todos o fazem e nem é fácil fazê-lo.

Se os cegos que pedem são cada vez mais, talvez isso seja apenas um sintoma da precariedade social que vai por este país. Sei, no entanto, que alguns acomodam-se à situação de mendigos e rejeitam qualquer ajuda.

Pensemos ainda noutra dificuldade: quantas vezes, vamos nós nas nossas cogitações e nos sai alguém ao caminho para nos fazer aquele já sabido interrogatório, que inclui coisas como se nascemos assim, se já fomos ao médico tal, e por aí adiante. Podemos predispor-nos a aproveitar a oportunidade para explicar, informar e desmistificar. Mas se estamos num dia menos bom e se naquele dia outras peripécias similares nos aconteceram, que espécie de boa imagem estamos dispostos a passar?

Às vezes, a nossa disposição de informar também não é bem recebida. Uma vez, uma senhora que insistia em chamar-me de "ceguinha" ficou muito ressentida porque lhe disse calmamente que gostava de ser chamada pelo meu nome, pois, defendia-se ela, ainda por cima me ajudava todos os dias a atravessar a estrada e não era por mal que me chamava assim...

Também não é fácil explicarmos a alguém que não temos todos uma mesma característica, que aparentemente é boa e, portanto, um elogio. Há tempos, numa loja disseram-me algo como "vocês são todos uns queridos, muito simpáticos, meiguinhos...". Eu tentei explicar à moça que não era bem assim, que nós somos pessoas com bons e maus dias, etc., mas acho que ela ficou a pensar que eu não estava boa da cabeça...

Os meios de comunicação social poderiam servir bem para dar uma idéia realista da nossa condição, mas essa oportunidade não é muitas vezes aproveitada, ou porque os locutores têm as suas próprias crenças sobre os cegos, ou porque os próprios cegos não estejam interessados em que os vejam como seres reais, mas sim especiais. Infelizmente, há cegos que adoram a bajulação dos seus colegas e amigos como seres superiormente dotados, isso dá-lhes muito jeito. Outros aproveitam-se da ignorância das pessoas para ganhar muito dinheiro, como um que conheço e que convence os seus clientes que tem poderes curativos para todos os males, pratica quiromancia e sei lá que mais. Agora pensem em quantas pessoas também se afirmam com poderes curativos e não são cegas. Os outros não se preocuparão com a imagem que vão ter por existirem pessoas assim. Nós, cegos, incomodamo-nos porque a generalização é algo que nos acontece a cada passo e, quem não contribui para uma imagem positiva, está prejudicando muitos outros que a tal pessoa serão comparados.

Não conseguiremos mudar isto, porque antes de sermos cegos somos pessoas e porque as mentalidades demoram séculos a serem mudadas. Pensemos: estando no século XXI depois de Cristo, só há 20 anos, ou nem isso, é que se começa a falar de inclusão!
Sandra.

MAQ - Marco Antonio de Queiroz - Brasil - 23/06/2007 - 01:49.

Oi António, boa noite.

Você tem plena razão. Não sei na poesia de quem escutei o seguinte verso: "O homem que vive entre feras, sente a incrível necessidade de também ser fera". (Tem jeito de ser Augusto dos Anjos). Se você é educado para ser nada, se todos acham que você é nada, você tem toda a tendência a nada ser. Por isso em meu livro, em meu site, no meu trabalho sempre penso que pessoas possam tirar algo para si, especialmente pessoas com deficiência. Não tenho a pretensão de ser algo a mais para ninguém, só espero ajudar pessoas a não se sentirem algo a menos. Os primeiros a serem sensibilizados para a nossa inclusão social, econômica e política tem de ser nós mesmos.

Lembro-me que quando arrumei meu primeiro emprego depois de cego, este me valeu para auto-afirmação, auto-confiança e auto-estima. Comecei a me relacionar com pessoas cegas emancipadas, que trabalhavam, que moravam sozinhas, que tinham bastante autonomia. Mas claro que conheci, nessa trajetória, cegos que se sentiam os coitadinhos, com uma tremenda baixa auto-estima, que não acreditavam em si mesmos.

Você mesmo, através da Ler para VerSite Externo., como eu com a Bengala Legal, já deve ter deparado com mensagens de pessoas cegas e familiares pedindo ajuda. Quando você vê a realidade dessas pessoas de perto, percebe que não depende de condições sociais e econômicas para que uma pessoa cega esteja rastejando no chão como pessoa e cidadã. É triste, mas foram educadas assim.

Já estive conversando na rua com um mendigo cego e esse, a determinada hora, pediu-me para sair de perto dele, pois percebeu que eu poderia estar mais bem vestido que ele, que tinha mais cultura que ele e que a cegueira não era o problema que o fazia mendigar. Afastei-me. No entanto, apesar de não ser a cegueira em si, mas o conceito que ela traz consigo e tudo que é divulgado a nosso respeito, que faz a maioria das pessoas ter pena de nós e nunca nos considerar como iguais.

Em nosso cotidiano estamos, na maior parte das horas, cercados de pessoas que nos conhecem e, assim, um pouco mais distantes da ignorância social. No entanto, quando nos deparamos com as pessoas que não têm convivência com cegos ou outra deficiência, o consenso ainda é de que somos coitadinhos.

Entretanto, António, os ventos estão soprando a nosso favor. Nunca se falou tanto em pessoas com deficiência, acessibilidade, inclusão escolar, social e econômica, em empregabilidade e tudo que nos atinge de perto. Muita gente fala ainda com o ranço do passado, mas fala. Quando falam temos a oportunidade de corrigi-las e educá-las. O que falta para nós mesmos nessa sociedade que cada vez mais, a seu modo, nos ouve e aceita, é aceitarmos nossa diferença como tal, e como diferentes exigirmos igualdade de condições para termos nossa dignidade reposta, nossa produtividade bem remunerada e tudo mais.

Essa luta, que hoje, com 30 anos de cegueira reconheço já estar mostrando resultados, não é para nós, mas para as próximas gerações. No Brasil, a lei de cotas, que obriga assistencialmente as empresas com mais de 100 funcionários a ter 5% dos cargos preenchidos por pessoas com deficiência desde 1991, tem feito novas gerações de pessoas com deficiência mais conscientes e mais atentas para suas próprias capacidades. Não se muda a cultura e a mentalidade de um país, e muito menos do mundo, em pouco tempo. Devemos, antes de tudo, começar por nós mesmos, lançando sementes naqueles colegas que pensam que não podem ser, que não são nada.

Outro dia um colega cego me perguntou porque eu colocava a questão que cegos escreverem e-mails era uma inclusão digital, pois ele nem mais considerava isso por estar já tão bem resolvido e a tanto tempo. Acontece que o mundo não somos nós e nem nossa consciência, o mundo ainda é feito de uma maioria de pessoas que ainda se espanta de um cego poder escrever e ler e-mails com autonomia. Então peço para comemorarmos, porque, para essa maioria é uma grande novidade. Já estamos anestesiados dessa novidade, de tanto tempo que a praticamos. Para cegos é a novidade mais antiga do mundo da informática. Entretanto, a desinformação ainda é mais antiga que a própria informática.

Vamos à luta, não tem como ficarmos parados.
Abraços inclusivos do MAQ.