Incesto: Depoimento de Força e Coragem.

23/04/2001 - Anahi Guedes de Mello.*

Oi amigos e companheiros, boa madrugada.

Li por mais de uma vez o que envio abaixo e pasmo, emocionado e apaixonado por tudo que significa, disponibilizo para todos: reflitam e se conscientizem.

Esse é um relato de vida pungente e corajoso, um desabafo de uma amiga. Anahi se mostra nele inteira, bela, com a força da atitude, com o mundo e a vida no coração!

Estou torcendo por ela, por nós e por nossa sociedade. O incrível disso tudo é também o fato de que, em casos tão diferentes do comum como esses, não sejamos discriminados por sermos pessoas com deficiência. Anahi é surda severa. Abaixo sua história.
MAQ.


Amigos,

Reconhecendo que a coragem não possa ser em vão, falar dessa realidade, mesmo tendo que manter certa transparência e discrição acerca da dor, constitui uma das minhas mais fortes verdades. Afinal, a verdade moral de um pode ser a mesma verdade moral de outro. E o que dizer das crianças indefesas? E é sobre isso que eu gostaria de falar agora. Porque envolve a cumplicidade da sociedade e o papel dela em denunciar. Neste momento, é preciso ser extremamente crítica.*

Tudo o que vou mostrar a seguir foram extraídos da *réplica* (está mais para memórias) que escrevi contra a contestação de meu pai, onde movo um processo na vara cível por danos morais relativo ao abuso sexual que sofri por parte dele durante quase 12 anos, e onde mais minhas duas irmãs, também vitimizadas sexualmente pelo nosso pai, se recusam a enxergar o óbvio desse pacto silencioso. Nem posso processá-lo na vara criminal por ser maior de idade, eis a hipocrisia da lei do código penal brasileiro e das Instituições Jurídicas.

A maior parte do que escrevi não foram para a réplica de fato, com os termos justos e advocatícios. No mais, peço-lhes a colaboração em divulgar meu e-mail. Encaminhem-no. Quem sabe, cada um de vocês podem colaborar com a sua parte salvando uma criança ou seja lá mais o que for. Por fim, peço-lhes que não se assustem com tudo aquilo que vou relatar a seguir.

Por fim, reafirmo, mais uma vez, a necessidade de estudos acadêmicos relativos à questão da violência e exploração sexual infanto-juvenil contra as pessoas com deficiências.

Anahi Guedes de Mello.

A Verdade dos Fatos.

Não seria esta a perplexidade face à minha coragem que não esperavam? Mais perplexa fico com a descomunal capacidade com que ele, ao longo de sua história, ainda consegue manipular as pessoas à sua volta diante do complô de silêncio envolvendo abuso sexual na família que, por sinal, realmente é uma história sórdida, asquerosa, mas não divorciada de qualquer conteúdo verídico e a verdade restabelecida é aquela que deveria ser baseada na lei do "quem não deve, não teme".

Senão vejamos o que significa este "aparente roteiro de filme pornográfico" que, de fato o é, e cheio de detalhes ricos e nítidos na minha memória de criança sexualmente vitimizada:

"Para se chegar a uma violação dentro do âmbito familiar é necessário primeiro que transcorra um certo período de tempo de abuso e acomodação, durante o qual o agressor controla a situação e a vítima acostuma-se ao abuso".

Ora, o fato de o agressor ser uma pessoa conhecida e querida pela vítima gera confusão, pois é incompreensível por que uma pessoa faria mal a quem tanto gosta e ama. De fato, em geral, as famílias nas quais acontecem o abuso sexual são muito particulares, pois respondem a uma situação que as mantém na mesma condição de abuso. Estes grupos familiares funcionam em um equilíbrio sustentado pelo abuso e pelo segredo: a situação de abuso adota a forma de um segredo onde a vítima não pode exteriorizar suas revoltas, sente-se com as mãos atadas e, além disso, cabe ressaltar que uma das marcas mais características de famílias incestogênicas é o seu isolamento familiar social, ou seja, ausência de reuniões comemorativas familiares com seus parentes e/ou recebendo poucas visitas.

E qual é o principal fator que favorece a longa permanência e continuidade de um ambiente de abuso sexual na sociedade? A resposta é simples: o seu ocultamento pela própria vítima! Por quê? O óbvio! Medo, instinto de sobrevivência, sentimento de culpa e, no meu caso, mais a situação de descrença na estrutura familiar, notadamente marcada pelo triste e lamentável histórico de separação com minha mãe, que nada mais foi do que uma cilada, armadilha, face às situações de extrema violência e espancamento a que ela foi submetida, conforme registro na Delegacia da Mulher da Capital, inclusive tendo a mesma parado no IML para exame de corpo e delito. E é mesmo preciso tomar um longo caminho de estudos para compreender tal fenômeno do abuso sexual como um fenômeno social de fato! Atento para o parágrafo seguinte, sobre a força da lei do silêncio, que poderia muito bem ser implicitamente explicada pela força de expressão com que encontramos nas palavras de Michel Foucault, em seu livro A Ordem do Discurso, p. 13:

"Escuta de um discurso que é investido pelo desejo, e que se crê - para sua maior exaltação ou maior angústia - carregado de terríveis poderes. Se é necessário o silêncio da razão para curar os monstros, basta que o silêncio esteja alerta, e eis que a separação permanece."

Ora, a condição de ocultamento é bem característica: ela é típica de sociedades com a prevalência de formadores de opinião e orientações históricas moralistas e religiosas com características de pensamento machisto-patriarcais. Divulgar a gravidade endêmica dessa questão com certeza abalaria alguns suportes "intocáveis" dessa sociedade, não é mesmo? O que dizer então do abuso sexual contra crianças indefesas? O óbvio. Senão até mesmo um "dever" do "macho", que, entretanto, com certeza, não é um homem.

Não há analogia que se possa fazer entre uma cicatriz física com aquelas que marcam as seqüelas psíquicas decorrentes de agressões à individualidade e à intimidade, dadas o risco potencial de sua etiologia na projeção dos efeitos para o futuro na vida da pessoa vitimizada. Em outras palavras, é indescritível a dor de uma vítima de abuso sexual e, por isso mesmo, não pode ser cicatrizada da mesma forma que uma dor física, haja visto que muito mais forte é, por instinto de sobrevivência e relações de medo e poder, aceitar passivamente de uma forma culturalmente permissiva essa cicatrização escondendo-a. Porque é isso que a hipocrisia da sociedade criou ao gerar as condições para esses episódios que espera de suas vítimas, potencialmente as crianças: o silêncio. Porque, quem assim agir (e é uma maioria esmagadora ainda) estará assumindo para si - a vítima -, a "responsabilidade" pelo que lhe aconteceu. E é exatamente isso que se exige e espera das vítimas: o silêncio.

A culpa gera a esperada inércia e impotência diante de mudanças indispensáveis e tem a ver principalmente com um forte embasamento da formação judaico-cristã ortodoxa das religiões ocidentais (e suas interpretações da vida com objetivos políticos e econômicos) que existem em nossa sociedade.

Verifica-se, por outro lado, nesse assunto em questão, que existe uma empatia necessária das pessoas outrora vitimadas em colaborar para que essa ameaça não se constitua em realidade para outras pessoas indefinidamente. E por isso também denunciam. Ou assumiríamos que o problema deixou de existir com a experiência sofrida por algumas pessoas e por isso deve ser esquecido? Também porque, e nem precisaria ser, além da questão empatia presente, a permanência de toda agressão dessa natureza passa a ser particularmente para as vítimas uma renovada agressão. Depois, não me venham com a associação de "carência" e vingança para com essa atitude denunciadora, isso é apenas mais um recurso estigmatizador das que devem ser sempre e eternamente vítimas silenciosas.

Um dos processos implícitos na eliminação desse problema endêmico social (tão endêmico quanto escondido, e por isso em continuidade) é não permitir que seja assumida a condição de vítima e/ou de culpa de quem já passou por isso. E com isso, a apregoada lei do silêncio que impera, quem perde, então? A dignidade de todos. Então, o que acontece quando se coloca muito lixo social "debaixo do tapete"? Que tal pararmos de cooperar com o jogo do dominador, tão óbvio em tantas facetas e acontecimentos dessa sociedade?

Pode ser que o "rei" esteja nu há muito tempo e alguns ainda insistam em querer ver roupas nele, por medo de mudanças necessárias. Especialmente, porque, dentre outras coisas, é graças à defesa dessa mentalidade hipócrita da sociedade é que permanecem estáveis e continuam ocorrendo os episódios de estupro e abuso sexual infantil dentro da sociedade.

Noutras palavras, é o fator cultural e religioso da aceitação dessas agressões, sob falsos rótulos e esperanças de perdões e silêncios, como se os mesmos fossem obrigações das vítimas - e não são!

Toda forma de "carinho" onde a criança não se sinta à vontade é abuso sexual. Não importa em que gênero, grau, modo e número em que se dá, ao menor pique de constrangimento ilegal à "tutela" do corpo da criança por si mesma e por "mínimo" que fosse parecer atentado violento ao pudor de forma mais "explícita".

Porque "explicitamente" para a sociedade é o estupro), ainda assim, implicitamente, estará cometendo abuso sexual. De fato, o agressor começa os primeiros passos com a mão colocada em zonas eróticas consideradas "normais" para o padrão de "normalidade", devagar, persuadindo, sugerindo. Se a vítima se recusa, o agressor ou usa a violência, ou caso a vítima se "recuse veementemente", o agressor que for muito esperto, para não cair nas mãos de denúncias, não a usa, mas ainda assim persiste o mesmo pacientemente, apenas esperando nos espremer psicologicamente na marra, até que cedamos. Primeiro, pelo meu corpo, nas partes mais sensíveis do membro superior, pelas nádegas e virilha, os toques sutis, sutis nas suas espertezas de convencimento de que era bom. Bom? Só suspiros tensos, constrangidos.

Quero, por outro lado, registrar aqui a falta de confiança e descrença que eu tinha nas instituições jurídicas. O longo histórico da passagem de minha mãe pela Delegacia da Mulher, onde ela fez vários registros de ocorrência de violência doméstica e nunca obteve nenhum resultado, por si só, já diz tudo. Justamente por causa dessa "cumplicidade social, institucional", destes e de tantos outros fatos, como é que eu poderia acreditar nesta instituição - a Delegacia da Mulher - ? O mesmo vale para o Ministério Público do Estado de Santa Catarina, que deixou de nos ouvir e de conferir a veracidade das acusações registradas pela minha mãe durante o processo de guarda das crianças que meu pai moveu na vara de família, onde ela avisou de que o abuso sexual, de fato, estava acontecendo na família.

Somente quando tomei conhecimento da campanha promovida pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina, o Fórum Catarinense pelo Fim da Violência e Exploração Sexual Infanto-Juvenil, fundado em meados de maio de 1998, é que passei a confiar aos poucos nas instituições jurídicas para assim começar minha luta pela recomposição de minha integridade moral outrora abalada pela violência sofrida.

Em minhas memórias, registro as seguintes palavras, que explicam claramente o porquê de não conseguir sair dessa conspiração silenciosa típica de uma família incestogênica:

Histórias de uma verdade sem fim, e até quando findará? Que silêncio foi aquele que não me permitiu o grito dantes? O grito que agora ecoa é o mesmo outrora adormecido no inconsciente desse silêncio, esperando a sua chance de sair das entranhas da escuridão manipuladora e sigilosa de suas idéias arrepiantes e, por conseguinte, se revelar monstro de uma verdade desapercebida por aquele que não pôde enxergar!

E como se deu essa manipulação? E por que é difícil reprimir um castigo suprimido que, paradoxalmente, confunde e traí o amor de filha pelo pai? Prossiga:

O começo. Devia e não devia achar certo? Ou seria: devia ou não devia achar errado? Qual era, pela vontade de verdade, a satisfação que podia ter nessas culpas? Se bem que fôssemos descrever como culpas "normais", mas não eram normais não. Estranho castigo mal castigado. Faltas sem sentido. Mesmo que naturais esses remorsos nos viessem. Num primeiro impulso emocional, o choque. Revelação. Temor. Nojo. Culpa. Sigilo. "Controle". Raiva. Medo. Em ódio, os músculos tentam resistir e não aceitam. Em amor, o coração não resiste e cede aos apelos. Não compreende e compreende, eis a questão. Sabe em consciência da loucura. Mas não sabe no inconsciente da manipulação dos desejos. Egos ensaiados, moldados por ensaios de ecos á culpabilidade da vítima. Ele, na sua "saudável" loucura, nos enlouquece, porque se diz certo.

E reforço a figura do caráter do meu pai: O algoz. Meu pai. Inacreditável psicologismo disfarçado às avessas da paranóia obsessiva do sei lá mais o quê. Comportamentos, condutas e desvios cada vez mais evidentes, com novas revelações. Tudo idêntico em todos os casos. Enfim, as últimas sete chaves do amontoado de quebra-cabeças se reafirmaram às minhas suspeitas latentes. Como resolver o dilema da figura paterna? Quando agia, era: ora pai? Ora homem?

Na contestação, consta o questionamento quanto às saudades e manifestações de afetividade que porventura eu sinta pelo pai e minhas irmãs. E isso é um ponto crucial que não pode jamais ser confundido - as diferenças nas inversões de papéis: pai/homem e filha/menina/mulher -, sendo perfeita e claramente explicado pela Psicologia. Assim, eu questiono: teria eu saudades? Pergunto: estariam se referindo às saudades dos ataques sexuais ou àquelas saudades de simplesmente estar na condição de filha? Como filha, tenho saudades do pai, não do homem que ele é.

Esse homem, que é meu pai não pode/podia/poderá ou deve/devia/deverá jamais confundir o afeto de uma filha com uma mulher, fazendo sexo com ela. O papel do pai na estruturação psicológica de uma filha é dar a ela o carinho necessário ao desenvolvimento de sua auto-estima como menina que um dia vai tornar-se mulher. O pai, ao usar o corpo de sua filha menina para atividades sexuais, quebra o desenvolvimento normal da sexualidade - que em cada menina leva anos - necessária à plena aceitação do outro - um homem - na sua atividade sexual. Assim, todas as meninas invadidas se tornam passíveis de serem arredias, agressivas e não dispostas ao convívio social ou a cenas de intimidade. Portanto, é normal, aceitável e até compreensível gostar e amar um pai. Tenho afeto, carinho, saudade e amor filial por esse meu pai, diferentemente do que sinto em forma de mágoas, raiva, ódio e tristeza permanente por esse homem, que, no entanto, é meu pai. E meu pai e minhas irmãs são meu sangue. Separemos uma coisa da outra. E por que isso acontece? Isso é bem perfeitamente explicável em Alexander Lowen, capítulo 08, sobre Abuso Sexual, página 154:

"Guarda-se uma tremenda raiva contra o pai por seu comportamento. Sua rigidez não era apenas um meio de controlar sua paixão; servia também para reprimir e controlar sua ira. Pois assim como derretemos de amor, enrijecemo-nos e tornamo-nos frios de ódio. O ódio, no entanto, estava na camada externa de músculos, não em seu coração. Como todos os indivíduos que são vítimas de abuso sexual, ela estava dividida: em seu coração, amava seu pai, mas, na camada muscular, resistia e odiava-o. Sua beleza era uma expressão de seu poder de atração sexual, mas sua sexualidade não estava plenamente disponível para ela".

Portanto, fica aqui registrado o forte embasamento do argumento de Lowen para o esclarecimento dessa mistura de sentimentos antagônicos em todas as vítimas de abuso sexual incestogênico cometido pelo próprio pai.

Finalizando, suficientes já são a tranqüilidade necessária frente à tomada de decisão de minha parte. Não temo ninguém, senão somente a Deus. Aos meus amigos, por si só, já bastam as orações nessa fase tão delicada pela qual estou atravessando na justiça (ainda que tardia).

"Já não mais importa o que fizeram de ti, mas agora o que fazes com o que fizeram de ti". Jean-Paul Sartre.

Anahi Guedes de Mello, 26 anos, surda profunda, acadêmica de Química da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis/SC.
Florianópolis, 22 de abril de 2001.


* Agradeço a participação especial do advogado Celso Galli Coimbra em muitos dos trechos aqui levantados, de autoria dele. Indispensável também é meu agradecimento pela valiosa colaboração de Sônia T. Felipe, doutora em Teoria Política e Filosofia Moral, professora do Departamento de Filosofia da UFSC. Por último, ad majorem Dei gloriam, agradeço à minha grande mentora, aquela que me tornou esse ser humano que hoje sou: minha admirável e corajosa mãe.