O Talento de Jamile Ferreira.

14/09/2006 - Revista Sentidos.

A inclusão social da pessoa com deficiência.

Persistente e confiante, ela superou barreiras, enfrentou desafios e concluiu, com maestria, o curso de Direito na Inglaterra.

Foto de Jamile Ferreira "As razões pelas quais eu perdi a visão nunca me causaram pesadelos. Eu acredito que cada um de nós nesse mundo tem a sua missão impossível a cumprir para benefício próprio e do mundo como um todo. Quando eu penso no homem e na mulher do sertão tentando salvar seu gado da seca, os povos cujos países estão em guerra, as crianças do NAAC, em Recife, que eu visitava aos domingos... percebo que minha missão é muito mais possível do que a deles." Essa é uma afirmação constante na vida da brasileira Jamile Pires Ferreira, de 26 anos.

Cega desde os 4 anos de idade, devido a uma endofitalmite bilateral tardiamente diagnosticada, Jamile conta com orgulho como venceu barreiras para alcançar seus ideais, viver e trabalhar como uma cidadã digna de seus direitos e deveres fora de seu país.

A ida para o exterior teve o incentivo de sua mãe, que sempre a apoiou e lutou para que ela pudesse ter uma boa educação e chegar aonde chegou. A escolha pela área jurídica foi feita quando ela ainda morava no Brasil. Começou o curso de Direito na Universidade Federal de Pernambuco e antes mesmo de terminar o primeiro período da faculdade ganhou uma bolsa de estudos para estudar advocacia na Universidade de Sheffield Hallam, na Inglaterra, onde mora há oito anos.

Hoje, formada e exercendo a profissão, Jamile se sente uma vencedora. Na entrevista, que concedeu ao site Sentidos, ela conta como é a experiência de estudar fora, de sua carreira e o quanto precisou se dedicar para superar as dificuldades que uma pessoa cega encontra para vencer na vida. Ainda mais vivendo em um país de cultura, língua e costumes diferentes.

Há quanto tempo você está morando na Inglaterra?

Estou aqui há oito anos. Moro com meu namorado, Karl, numa cidadezinha chamada Sandy, no condado de Bedfordshire, a cerca de 80 km ao norte de Londres. Trabalho em Londres, mas não moramos lá. Isso é comum na Inglaterra, já que as distâncias são relativamente curtas entre um local e outro. As pessoas costumam trabalhar na capital e morar fora, numa cidade mais calma. Todo dia, eu viajo de Sandy para Londres de trem e retorno depois do expediente.

Como surgiu a proposta da bolsa de estudos?

Eu comecei a estudar inglês, aí no Brasil, aos 13 anos de idade. Em 1998, quando estava no início do curso de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) fui incentivada pelas pessoas da escola de idiomas a procurar o Consulado Britânico para saber da possibilidade de estudar na Inglaterra. Já no Consulado me certifiquei de que a única forma de estudar e morar fora era por meio de intercâmbio. Isso estava fora da minha realidade, pois minha família não tinha condições financeiras para me manter em um outro país e pagar os estudos. Saí de lá chorando crente de que jamais estudaria na Inglaterra. Seis meses depois visitei uma exposição sobre cursos no exterior e lá conheci o senhor John Kirk, responsável pelos estudantes estrangeiros da Universidade Sheffield Hallam. Contei a minha história para ele - todo o esforço dos meus pais para que eu pudesse me alfabetizar - e demonstrei o meu interesse em estudar fora por meio de uma bolsa. O senhor Kirk disse que iria verificar a possibilidade de uma bolsa e tomou nota de meu e-mail. Dentro de dois meses, ele me escreveu oferecendo a tão esperada bolsa. Eu enviei o meu currículo, a documentação oficial com minhas notas do colégio e da faculdade. Não precisei fazer provas específicas. No momento, não existe vestibular na Inglaterra - os ingleses se inscrevem para três universidades de sua escolha e recebem ofertas de vagas dependendo de suas notas no colégio.

Como você reagiu diante da notícia de que havia ganhado uma bolsa de estudos?

Com muita surpresa e euforia, mas que logo depois virou pânico e a preocupação. Eu teria que deixar o Brasil, minha casa, minha família e amigos, tudo que conhecia e que fazia parte de minha vida, para ir morar sozinha num país estranho. Ter que se comunicar por meio de uma língua estranha todos os dias e viver com gente que nem conhecia. Muitas dúvidas surgiram. Como iria cuidar das tarefas domésticas? Será que agüentaria o frio? Será que meu inglês era suficiente para entender as aulas da faculdade? Tinha nove meses para me preparar, pois as aulas começariam em setembro de 1998 e era janeiro. Bom, enfrentei o desafio.

Como foi a sua infância no Brasil?

Sempre estudei em escola regular. Perdi a visão aos 4 anos, e aos 5 eu já fui alfabetizada em braile. Pelo que eu me lembro, na época não haviam escolas especiais para deficientes visuais no Recife. Havia um instituto dos cegos, mas meus pais não concordavam com a filosofia da instituição e preferiram observar minha educação de perto. Eles contrataram uma professora que me ensinava braile e me acompanhava na escola. A experiência que durou até a quarta série do ensino fundamental não deu certo, pois a professora me tirava da sala de aula e eu acabava o tempo todo fazendo atividades longe das outras crianças. Também não recebia muita atenção dos professores da sala regular.

Fui estudar em uma outra escola regular. Nessa, eu era tratada como os outros alunos. Participava das aulas e atividades de classe sem ser excluída e ter de brincar com equipamentos especializados. Aos 12 anos, aprendi a datilografar num teclado comum e comecei a responder minhas provas em letra comum, diminuindo a necessidade de transcrição pela professora de braile.

O que você pensa da educação inclusiva?

Acredito muito na educação de pessoas com deficiência em escolas regulares. A educação especial causa a segregação em um mundo especialmente adaptado para as crianças com deficiência. Isso pode gerar a ilusão de que tudo do lado de fora da escola também será acessível a elas e que as pessoas entenderão suas necessidades. A maioria das pessoas tem visão e nunca conheceu um deficiente na vida. Por isso há ignorância e curiosidade, e eu acredito que nós deficientes devemos aprender como lidar com isso desde cedo.

Há também o fato de que a sociedade exige certos comportamentos que as crianças com visão aprendem através da observação. Muitos profissionais esquecem de ensinar esses comportamentos para as crianças que não enxergam, como se não fossem importantes para elas.

E a faculdade britânica, como foi o início do curso?

Aos 19 anos, eu ainda não sabia lidar com as pessoas, não sabia que ajuda podia pedir e a quem. Hoje em dia eu sei que, não importa qual seja o país, muitas pessoas, inclusive os próprios profissionais, não sabem exatamente de que ajuda nós deficientes precisamos - nós é que temos que ajudá-los a entender nossas necessidades. Eu tinha vergonha, me sentia uma estrangeira onde não devia ter sido chamada, e não queria me meter muito. Os ingleses tinham lá a ajuda de suas prefeituras, tinham equipamentos, ajudantes, cães-guia. e eu achava que não tinha direito a nada disso. Passei nas provas do primeiro ano de faculdade na marra, aliás, bem na média, apesar de ter me esforçado bastante.

Nas primeiras férias de verão, em vez de voltar ao Brasil para curtir, resolvi ficar na Inglaterra tentando me organizar para o segundo ano letivo. Tinha que melhorar minhas notas se quisesse ser alguém na vida. Meu inglês já tinha melhorado e eu já entendia um pouco mais como os britânicos funcionavam. Deixei de ter vergonha de ser estrangeira e fui a luta.

Fale um pouco sobre a universidade e dos recursos que ela possui para uma pessoa cega.

Depois de alguns dias na faculdade, quando meu pai ja tinha retornado ao Brasil, eu descobri que minha bolsa não cobria as despesas de profissionais e equipamentos para me auxiliar em meus estudos. Na Inglaterra, cada estudante deficiente recebe apoio financeiro da prefeitura de sua cidade para pagar por equipamentos especiais, ajuda com leitura e outras tarefas escolares e até domésticas. Como eu era estrangeira e não tinha uma "prefeitura" da qual pudesse conseguir essa ajuda financeira, resolvi conversar com a direção da universidade e acabei conseguindo com que ela pagasse uma colega de classe para ler os livros para mim.

Com a ajuda de meu namorado, que trabalhava numa empresa de informática, consegui uma espécie de máquina. Com ela eu conseguia salvar as anotações em disquetes para que alguém as lesse para mim mais tarde.

Logo depois descobri que a universidade tinha vários recursos. O software leitor de tela, o JAWS, era um deles. Os professores também me ajudavam, preparando os manuais para cada cadeira e salvava em disquete.

Por fim, encontrei a tão falada biblioteca em áudio da RNIB - eles tinham vários dos meus livros de Direito, já gravados em fita, que podiam ser enviados para minha casa pelo correio, e que eu podia mandar de volta no final do período de empréstimo sem custo nenhum.

Você se considera uma pessoa independente?

Sim. No primeiro ano do curso eu morava em um apartamento com uma amiga brasileira que também estudava na mesma universidade. A partir do segundo ano, resolvi morar sozinha - não queria mais falar português, não queria mais me distrair com amigos - queria estudar, aprender o mundo de coisas que eu nunca tinha visto antes. Passei muitos dias em um apartamento frio, sozinha, estudando ferozmente para aprender tudo que não tinha entendido no primeiro ano. Não tinha televisão, então escutava a rádio BBC 4 enquanto fazia e comia meu jantar. Assim fui aprendendo mais sobre o país, como funcionava o mercado de trabalho e o mercado financeiro, como os ingleses se divertiam e como viam o mundo. Às vezes é difícil batalhar, quando a gente se vê com tantos problemas, quando parece que os outros se dão bem sem precisar fazer o menor esforço, e a gente passa a vida lutando. Mas acredite, quando a gente batalha, as portas do mundo se abrem e nós conquistamos nosso lugar na sociedade, através do esforço e do respeito que ensinamos o mundo a ter da gente.

Terminei o segundo ano de faculdade com notas altas, ganhei dois prêmios da universidade e consegui meu primeiro estágio, trabalhando para o departamento jurídico do governo britânico em Londres. Eu sempre lembro do que a Irmã Maria de Jesus, freira de minha escola, no Recife, dizia: "para Deus nada é impossível".

Qual é a sua especialidade na área jurídica e onde você está trabalhando no momento?

Trabalho na firma de advocacia Freshfields Bruckhaus Deringer, mais conhecida como Freshfields, no departamento de direito bancário e corporativo. Especializei-me na área de normas financeiras e mercados financeiros.

Como os londrinos enxergam uma pessoa com algum tipo de limitação?

Por um lado, com o respeito e a discrição com que os ingleses enxergam a maioria das pessoas, mas também com suas dúvidas. Muitos londrinos não sabem dos detalhes de como vivem as pessoas com deficiência, de que nós usamos o JAWS para ler a tela do computador, por exemplo. Muitos também confundem os tipos de deficiência - às vezes me perguntam se eu posso subir escadas, ou se eu preciso de uma rampa, como se eu tivesse em uma cadeira de rodas. Mas na verdade, os londrinos são bem mais cientes de que pessoas com deficiência têm seu lugar na sociedade e precisam do apoio dela. Muitas vezes eles não sabem exatamente como esse apoio deve ser. Não querem sufocar-nos com ofertas de ajuda, porque seria falta de educação subestimar nossa capacidade, mas também não querem nos deixar na mão.

No Brasil todos os dias eu tinha que responder à pergunta: "você é cega de nascença?", em Londres todos os dias eu respondo à perguntas como: "você precisa de alguma ajuda? ou está bem aí?".

Em questões de acessibilidade, Londres está muito mais avançada do que o Brasil e até mesmo com relação a capitais de outros países? Quais?

Ainda não visitei muitas capitais européias. Quando tiro férias, vou ao Brasil, ou ao litoral da Grã-Bretanha e lugares mais remotos da Europa, como a Grécia e o País de Gales. Pretendo ir a Paris em um fim de semana este ano, e irei a Amsterdam, na Holanda, a trabalho em novembro, então poderei fazer uma comparação.

Londres tem alguns sistemas que facilitam o acesso a transportes públicos, por exemplo. Muitos ônibus têm rampas para pessoas com deficiência físicas. Os trens ainda não têm rampas automáticas, mas os funcionários das estações têm a obrigação de oferecer uma rampa, montada no trem manualmente em segundos. Para as pessoas com deficiência visual, há um amplo sistema de apoio nas estações de trem. Se eu pego um trem em Sandy, o funcionário da estação avisa ao funcionário da estação em Londres e este vem me receber na plataforma e se oferece para me acompanhar até o metro, parada de ônibus ou estação vizinha. O mesmo sistema se repete se eu trocar de trem numa estação para ir a outra parte do país. Isso me da uma liberdade incrível, eu sei que posso viajar sozinha para qualquer cidade, mesmo sem nunca ter ido antes.

Como é a sua rotina em Londres?

Saio de casa cedo no trem que parte pra Londres as 7:30 da manhã. Meu namorado me deixa na estação antes de ir trabalhar. Ainda uso o mesmo estilo de bengala que usava no Brasil. Aqui há vários outros tipos, inclusive com pontas redondas que rolam pelo chão, mas eu prefiro a minha de sempre. Não tenho cão-guia. Tenho um cachorrinho terrier em casa, chamado Benjy, mas ele de guia não tem nada! É um sapeca. se bem que às vezes as meninas brincam no trabalho, dizendo: "Traz Benjy, diz que ele é o teu cão-guia!

" Cães-guia são permitidos em todo lugar no país, inclusive restaurantes e outros ambientes fechados, onde nenhum outro animal seria permitido. Os cães-guia são muito inteligentes. No trabalho, divido o gabinete com uma colega. Trabalho duro, mas quando dá saímos para almoçar. Nos fins de semana eu e meu namorado costumamos sair para jantar, fazemos compras e nos divertimos como outros casais.

Com relação às leis londrinas que amparam pessoas com deficiência. Normalmente elas são cumpridas?

Existem várias leis, principalmente no ramo de discriminação. Não se pode discriminar o deficiente nas escolas, mercado de trabalho ou acesso a locais públicos. Também há leis com relação a entrada de cães-guia em locais fechados, elevadores com ferramentas de acesso para deficientes e muitas leis sobre apoio financeiro em vários ramos do governo. Há lei que permite ajuda financeira para compra de equipamento, para pessoas com deficiência desempregadas e ajuda financeira para pais que não podem trabalhar porque precisam cuidar dos filhos com deficiência severa. As leis não são perfeitas e muita gente ainda reclama, mas em sua maioria são cumpridas. Também sempre há propostas de mudanças para resolver alguma questão ainda não prevista pela lei.

Você tem hobbies?

Gosto de esportes, de tudo um pouco - nadar, andar de bicicleta, patinar, correr no parque, caminhar pelo campo e parar num restaurante inglês típico para almoçar no meio do caminho. Também gosto de ler as obras de Machado de Assis, as quais leio pela Internet quando posso, e dos contos de Fernando Sabino.

Quais são seus planos para o futuro? Pretende morar por muito tempo na Inglaterra?

Não tenho planos de voltar para o Brasil tão cedo. Apesar de sentir muita falta de minha família, tenho a vida que pedi a Deus na Inglaterra, profissionalmente e na vida pessoal. Foi uma batalha chegar até aqui, e todo dia ainda é uma batalha para trabalhar duro, ficar em contato com a família, ler os jornais dos dois países, cuidar de minha casa, dar atenção a Karl e ao nosso cachorrinho.

Agradeço aos meus pais pela educação que me deram, e pela força de vontade e determinação que me ensinaram para chegar aonde cheguei, e para continuar batalhando para chegar ainda mais longe. Quero casar, ter filhos, conhecer outros países, crescer na Freshfields e trazer meus pais para a Inglaterra para passarem alguns meses do ano comigo. Também gostaria de contribuir um pouco com os dois países, para a questão da deficiência. Ajudar a acabar com os bichos-papões. Ajudar pais e profissionais interessados nessa área a saber como dar a seus filhos ou alunos o apoio de que eles precisam para desabrochar. Por isso, faço parte de um grupo de apoio a pais de crianças com deficiência aqui na Inglaterra e tento contribuir com minhas experiências, respondendo à perguntas de pais sobre tudo - desde como ensinar seus filhos pequenos a andar e comer sozinhos, até questões de educação básica, faculdade e de mercado de trabalho. Um dia, eu e minha mãe vamos escrever um livro sobre nossas vidas, nossa luta e as muitas maravilhas que conquistamos ao longo do caminho.

O que você diria para uma pessoa com deficiência que ainda não alcançou seus objetivos?

Vai a luta! Essas coisas não caem do céu em nenhum país do mundo. Não há nada mais gratificante que conquistar nosso lugar na sociedade, exercer uma profissão, ter o que fazer todo dia. As limitações não nos impedem de ser quem somos - ás vezes nós chegamos aos mesmos fins por meios um pouco diferentes.


Reportagem: Claudete Oliveira.
Revista Sentidos - 11/09/2006.