O que Vê a Cegueira?
O ano é 1964, a menina é cega e aprendeu com as pedras a dura lição de tentar enxergar uma primeira resposta para essa questão, sob a capa dessa experiência. As pedras são como lugares em que a natureza trabalha em silêncio. Lugares em que as moléculas, os átomos, em sua cavalgadura, são testemunhas do tropel cósmico que produzem, criando os ciclos da vida.
A menina tinha fascinação pelas pedras, assim como pelo vento, pela chuva anunciada no campo através do modo plural que a natureza tem de nos falar. As pedras, sobretudo, enchiam sua infância de espanto e perplexidade. No pátio da casa, um pátio de terra batida que sua mãe cuidava de varrer todas as manhãs, havia uma fileira de quatro ou cinco pedras, encostadas a parede da cozinha. Fila indiana de rochas irmãs, algumas mais altas, outras mais baixas, todas pouco menores do que ela, no topo dos seus quatro anos.
Naquela época, em algum sítio da sua consciência, já havia se incrustado a sua sensação de cegueira, algo obscuro, é certo, mas pleno dessa situação ambígua onde por certo já conviviam pequenas angústias, pequenas alegrias.
Numa manhã de sol radiante, marchava ela defronte das pedras, num passeio ritmado de criança, quando deu pela presença das pedras. Não que não soubesse que elas sempre ali estiveram, por as ter tocado, por ter feito delas extensões das suas brincadeiras infantis. Dera pela presença das pedras de um modo novo, como se as estivesse vendo. As pedras lhe comunicavam sua presença irradiando algo na face. Como ela não sabia o que era "ver", tomou por "visão" aquele acontecimento. E maravilhada, marchou diante das pedras, como se estivesse em transe, repetindo um mantra que inventara naquela horinha mesmo: "Eu vejo! eu vejo!".
Dizia aquilo com a inocência e a convicção de uma criança de quatro anos. Foi quando para "ver melhor" uma pedra, calculou mal a distância entre sua face e a rocha e esbarrou brutalmente contra a mesma, interrompendo a sangue e a dor, a doce lição de "ver" dentro da cegueira. Lágrimas e remédios caseiros empurraram para o fundo da memória a força daquela experiência, e, por muitos e muitos anos,ela não pensou mais naquele primeiro ritual de iniciação, duro ritual que lhe tinha posto sozinha com sua cegueira, exposta as bordoadas nas pedras.
Não pôde compreender de imediato, a verdade que as pedras haviam lhe ensinado. Essa verdade não se revelou por inteiro, mas aos poucos, por insinuações, pensamentos, conjecturas. As pedras, a seu jeito, golpeando-lhe a face com sua rude estrutura, haviam lhe ensinado a "ver" mesmo dentro da sua cegueira. Levou tanto tempo para decifrar os nós daquela experiência! Caminhava, caminhava, e sempre, de algum modo, retomava aquela afirmação infantil, agora sob a forma de pergunta: O mantra se renovara: Já não afirmava mais "eu vejo!", mas antes indagava: O que vê a cegueira?
A menina cresceu e de novo pôde apreciar a velha lição das pedras, agora burilada, como jóia nova e brilhante. "A minha cegueira é uma forma de visão!", "A minha cegueira é uma forma de visão!". Dentro da sua cegueira, compreendeu que sempre vira com o corpo inteiro. Via com os pés, que lhe indicavam as mudanças de solo; via com as mãos, com a face; via por todos os poros do seu corpo e continuava vendo e dialogando com o mundo de um modo próprio, o seu modo de "ver".
Joana Belarmino é jornalista, professora do Curso de comunicação e turismo da Universidade Federal da Paraíba, Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.