Pais: Missão de Amor e Responsabilidade.

13/11/2002 - Leomélia de Carvalho.

Sou portadora de Luxação Congênita Bilateral dos quadris, detectada tardiamente. Quando comecei a andar minha mãe achava que eu tinha o "andar de pato Donald". O pediatra, na época, ignorou o que ela falava e não deu a menor importância. Como eu era muito danada brincava de dia e, por ter dores, chorava de noite.

Então minha mãe resolveu pedir a opinião de um outro médico que sugeriu que ela procurasse um ortopedista. Prosseguindo com todos os exames necessários, foi detectado, então, meu problema. Nessa época, meus pais tinham uma boa situação financeira e optaram por iniciar meu tratamento no Rio de Janeiro, pois somos do Ceará, onde meus pais vivem até hoje.

Com dois anos e seis meses fiz minha primeira cirurgia nas duas pernas: uma ficou bem mas a outra, teimosa, continuou apresentando problemas. Problemas estes que me fizeram passar por mais quatro cirurgias e que obrigavam minha mãe a sair de sua casa e de perto de seu marido para estar comigo, durante meses e meses, entre o Rio de Janeiro e São Paulo (onde fiz as duas últimas cirurgias).

Foi uma infância diferente, mas para os outros pois pra mim estava tudo sempre bem... Na sala de minha casa, além do sofá e cadeiras, havia uma cama onde eu passava o dia inteiro a fim de não ficar trancada no quarto e não participar do movimento da casa, falava minha mãe. Quando dava ia ao colégio onde assistia aula em cima das carteiras, pois o gesso não me deixava sentar. Quando não era possível, minha mãe passava horas e horas comigo para que eu aprendesse com ela o que meus colegas estariam aprendendo na Escola.

Hoje minha mãe conta que, estando longe de casa, as vezes tinha vontade de me jogar pela janela e depois se jogar também... Mas sempre pensava que aquilo tudo iria acabar e aí desistia. E assim foi; quando eu estava aprendendo a andar fazia mais uma cirurgia e, entre muita natação e fisioterapia, tive que aprender a andar várias vezes...

Para minha mãe, eu tinha que ser a melhor aluna da classe, a mais inteligente, a mais desinibida e em hipótese alguma eu podia me sentar numa cadeira de rodas, nem segurar muletas. Para ela, a dúvida de que se um dia eu andaria sozinha, nunca existiu, para ela era só questão de tempo.

Uma vez, eu engessada do dedão do pé até abaixo dos seios, deitada na cama, ganhei de Natal uma bicicleta, "é para quando você estiver andando, minha filha, e tem que ser sem rodinhas!" dizia meu pai. Lembrando e analisando esses fatos vejo hoje que realmente pra eles nunca houve nenhuma dúvida de que eu teria uma vida completamente normal.

A persistência e paciência de minha mãe é que não eram normais, e as vezes chegava até a ser dura, o que para ela deveria ser muito difícil... Quando pedia alguma coisa ela falava: "- Vá você mesma buscar, segure nas paredes e nos móveis, se você cair, me chame que vou te levantar." E assim o tempo passou...

Nunca minhas coleguinhas de colégio me trataram mal (e olha que eu usava um aparelho na perna inteira e botas), e minha alegria e modo de agir também nunca me deixaram sentir-me constrangida em fazer qualquer coisa. Tive uma adolescência deliciosa, fazia curso de inglês: fazia questão de ir de ônibus sozinha e minha mãe, com o coração na mão, nunca impediu; ia às festinhas, ao Shopping, tinha até paquerinhas.

Com 16 anos tive meu primeiro namorado, que andava comigo como se estivesse carregando um troféu, fez com que eu me sentisse uma mulher realmente igual a todas as outras. Depois dele houve outros, mas ele me marcou muito pelo jeito que me tratava. Aos 18 anos, tirei minha carteira de habilitação, passei por uma bateria de testes e consegui visto para dirigir carros normais sem adaptação. Aos poucos minha vida se tornava uma vida comum, igual a todas as meninas da minha idade e só eu e minha família sabíamos o gostinho especial de tudo isso!

Cresci e amadureci. Como nunca perdi nenhum ano na Escola, acabei o Científico com 17 anos. Mais tarde, passei no vestibular em terceiro lugar e entrei na Faculdade de Administração de Empresas, me formei aos 25 anos. Nessa época, um pouco antes de me formar, tive dificuldade em conseguir estágios e empregos. Depois de muito correr atrás, um dia acordei e vi que tal dificuldade se devia a minha perna. Aquilo me incomodou, mas sempre tive na cabeça que, como existem pessoas más também existem pessoas boas e que com empresas não seria diferente...

E não foi! Dias antes da minha formatura recebi um telefonema falando que havia sido aprovada para um projeto de treinamento pra futuros Gerentes na maior rede de Drugstores (em número de lojas) do Brasil. E assim conquistei meu primeiro emprego. Só eu e Deus sabíamos o que ele representava pra mim... Acho que uma grande conquista após uma vida inteira de pequenas conquistas. Alguma coisa me fazia ter certeza que ia dar tudo certo!

Hoje, após quatro anos e meio de formada estou em uma outra rede, novamente de Drogarias. Por causa desse novo emprego, tive que mudar-me de Fortaleza para Belo Horizonte. Vim sozinha, não tinha parentes nem amigos aqui, só tinha uma imensa vontade de vencer e de conquistar mais um desafio com a coragem que minha mãe me passou a vida inteira!

Com quase dois anos morando em Belo Horizonte, tenho me adaptado bem, também conquistei um companheiro e vivemos juntos. É uma pessoa que me trata como meus pais faziam e de certa forma acho que também tem orgulho de estar ao meu lado. Filhos? Ainda é cedo, preciso estudar ainda mais... mas não estão fora dos meus planos, aliás é mais um outro sonho que correrei atrás daqui a algum tempo.

Gostaria de destacar em meu depoimento a importância de que, sermos tratados iguais deve começar EM CASA. É isso que vai fazer a diferença. Os pais têm nas mãos a possibilidade de decidir se vão ajudar a fazer de seus filhos com deficiência, pessoas fortes, donas de seus destinos ou pessoas fracas, medrosas e sem destinos! Todas as pessoas, inclusive nós, somos frutos de nossa criação e de nossa vontade, nosso futuro depende disso!

Senhores pais, não façam de seus filhos pessoas fracas, tenham com eles a atenção e o carinho necessários, mas exijam deles também. Como podemos cobrar da sociedade a não discriminação se ela, na maioria das vezes, começa no lar?


Obs. do responsável pelo site: é claro que a ajuda familiar é um elemento importantíssimo na conduta de uma pessoa, mas nada acontece sem que ela própria consiga aproveitar um ambiente propício. Conhecemos pessoas com deficiência que, mesmo tendo uma família desanimadora, trancando seu parente com deficiência, pondo-lhe medo na tomada de iniciativas, são pessoas que superaram as amarras da superproteção e conquistaram suas vidas, seus desejos, seus sonhos... com muito mais sacrifício, dificuldades, na marra, mas conseguiram.. No final, devemos dar nossos parabéns a todos que lutam por sua liberdade, que, com vitórias e derrotas fazem de si e de suas vidas o que o coração, a coragem e a vontade impelem. MAQ.