A história de um cego e cidadão.

05/11/2011 - Manuel Augusto Oliveira de Aguiar.

História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil

Manuel Aguiar tem 60 anos e é natural de Surubim-PE. Manuel e seu irmão mais velho apresentaram, a partir dos 2 anos de idade, uma deficiência visual. Ficou cego entre 9 e 10 anos de idade. Com 15 anos, foi estudar no Instituto Padre Chico, em São Paulo, onde permaneceu por três anos. Concluiu os estudos em Recife. É formado em Administração de Empresas pela Universidade Católica de Pernambuco.

Manuel participou da Comissão Organizadora do Encontro de Recife, denominado Congresso Brasileiro de Entidades e Pessoas com Deficiência, realizado em 1981. No mesmo ano, participou da fundação do Movimento Estadual pela Emancipação das Pessoas Portadoras de Deficiência (MEPES). Em 1983, Manuel foi um dos fundadores da Associação Pernambucana de Cegos (APEC), da qual foi presidente por quatro gestões (1983-1984, 1985-1986, 1987-1988 e 1997-2000). Ainda entre 1981 e 1988, integrou o Conselho Estadual de Apoio à Pessoa Portadora de Deficiência. Em 1988, participou da Assembleia Nacional Constituinte como delegado por Pernambuco, eleito para representar o segmento de pessoas com deficiência visual pela Coalizão Nacional de Entidades de Pessoas Portadoras de Deficiência. Entre 1997 e 1999, coordenou a I Pesquisa Censitária de Pessoas com Deficiência, no Estado de Pernambuco. Entre 2000 e 2007 foi superintendente da Superintendência Estadual de Apoio a Pessoas com Deficiência de Pernambuco.


Entrevistador: Qual é o seu nome, sua idade e seu local de nascimento?

Manuel Aguiar: Manuel Augusto Oliveira de Aguiar, 60 anos, conhecido como Manuel Aguiar (brigo pelo “u” do Manuel). Sou natural de Surubim, uma cidade do interior de Pernambuco, na divisa da Zona da Mata Norte com o Agreste Setentrional. Sou o segundo de uma família de dez filhos, dos quais os dois mais velhos apresentaram, a partir dos 2 anos de idade, uma deficiência visual que foi se agravando com o crescimento.

Roberto, que era meu irmão mais velho, ficou cego entre 15 para 16 anos, e eu fiquei cego aos 9, 10 anos de idade, quando parei de estudar. Tive, até os 11 anos, uma interrupção nos estudos. Dos 12 aos 13 anos, frequentei como ouvinte o admissão e a primeira série ginasial. Papai conseguiu uma professora itinerante, Maria de Lourdes, que vinha duas vezes por semana à Vitória de Santo Antão, onde morávamos na época, para me ensinar o Braille; ela havia conseguido alguns livros impressos nesse sistema. Nesse intervalo, dos 9 aos 14 anos, duas coisas me marcaram para sempre, me fizeram compreender minha condição de cego e revelaram as contradições da sociedade, fatos que lá adiante seriam determinantes em meu comportamento e no caminho que viria a trilhar: primeiro, fui apresentado ao Braille; depois, a convivência no campo. Fui, então, para São Paulo, com essa aprendizagem, terminar o ginásio no Instituto Padre Chico.

Entrevistador: Em que ano você chegou ao padre Chico?

Manuel Aguiar: Em 1964, no dia 10 de abril. Então, vamos em busca da liberdade de ir e vir. Minha experiência em São Paulo foi muito rica. Eu queria ficar em São Paulo, mas quem mandava era o velho, e ele disse: “Que é isso, cara, vem embora para Recife”. Voltei para Recife, onde concluí o curso médio e o terceiro grau.

Entrevistador: Em que ano você voltou?

Manuel Aguiar: Voltei em dezembro de 1966. Em 1967, comecei o primeiro ano clássico.

Entrevistador: E qual curso universitário você fez?

Manuel Aguiar: Desejava fazer Filosofia ou algo nessa direção. Mas, por estar, naquele momento, empolgado com o marxismo, resolvi fazer Economia. Foi outro caos, porque a família não acreditava que eu poderia ser um economista cego: “Isso não existe, você tem de ser advogado ou professor”. E eu desafiei, fiz Economia. Vindo do Clássico, consegui passar no sétimo lugar na Faculdade de Economia da Católica, que era a terceira do ranking no País. Até um nível, eu fui. Quando começou o segundo período, com um nível de conhecimento matemático maior, derivada e limite, chegou ao meu limite: “Não dá! Aqui, embora eu quisesse, não dava para mim. Vou fazer Administração”.

Em 1975, surgiu uma oportunidade de fazer um curso de Programação em Computação para cegos em São Paulo, promovido pelo Instituto Brasileiro de Incentivos Sociais (IBIS), a International Business Machines (IBM) e a International Telegraph and Telephone (ITT). Era a segunda turma. Meu professor de informática da faculdade, Jaime Galvão, disse: "Cara, você tem jeito para isso. Vá embora fazer o curso." Foi a partir dessa vivência que comecei a despertar e me envolver com as questões das pessoas com deficiência. Tomar consciência dos reais e invisíveis obstáculos do segmento. Paralelamente, o que eu propus? Inventei uma campanha de conscientização do empresariado paulista. Cheguei a falar com o dono da Rádio Bandeirantes, João Saad, e ele autorizou a campanha. Dei entrevista – minha primeira entrevista em rádio foi em São Paulo – falando de emprego para a pessoa cega. A Rádio Bandeirantes levou ao ar, durante três meses, a campanha “Empregue uma pessoa cega na sua empresa”, com jingles legais. Terminei o curso, muito bem e, junto com alguns outros alunos, fomos chamados pelo Banco Itaú para trabalhar. Eu disse: “Quero não. Vou para o Recife, porque esse curso eu vou fazer acontecer em Recife, no Nordeste.” Mas só consegui realizá-lo em 1983. Foi com a minha chegada a Recife, também, que iniciei a militância na área de cegos. Comecei a me encontrar e a me enturmar com os companheiros cegos que, a princípio, me olhavam muito desconfiadamente.

O movimento em Pernambuco.

Entrevistador: A Associação Pernambucana de Cegos (APEC) foi a primeira associação do Movimento das Pessoas com Deficiência com a qual você se envolveu?

Manuel Aguiar: Não. Como já relatei, a primeira delas foi o IBIS, em São Paulo. Tive, ainda, uma discreta participação na Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes enquanto pensávamos e formatávamos a APEC.

Entrevistador: Havia outras organizações de pessoas com deficiência em Pernambuco naquela época?

Manuel Aguiar: Sim. A Fraternidade Cristã e a Associação de Deficientes Motores de Pernambuco (ADM), com as quais, naquele momento, tinha alguma relação, e algumas outras de que não me recordo agora. Porém, aqui em Recife, havia um grupo de cegos que já se organizavam, querendo criar uma entidade representativa de nossos ideais, motivados pelas discussões e decisões da reunião de Brasília, em 1979, na qual não estive presente.

Entrevistador: O Encontro de Brasília foi em 1980.

Manuel Aguiar: Creio que houve um em 1979, antes do Encontro de Brasília, no Rio. Acho que estou misturando as coisas. Não me lembro mais. Nesse momento ainda não estava ligado ao Movimento da Coalizão. Mas, com certeza, foi a partir desse Encontro que começamos a discutir, entre nós, nossas questões. É quando começaram a surgir, em Recife, os primeiros grupos a discutir as necessidades e a efetivação dos direitos do segmento, as pessoas com deficiência se buscando.

Entrevistador: Quais eram as principais lideranças naquele momento?

Manuel Aguiar: Na área dos cegos, havia um pessoal no Rio de Janeiro, Hersen e Carlos Hildebrandt, que eram irmãos, e Maurício Zeni, um dos principais ideólogos de nosso movimento. Foi esse grupo que, desde 1977, criou a Associação dos Cegos em Luta por sua Emancipação que, em 1982, publicou, em Braille, a revista Alternativa, referência dos pensamentos de autodeterminação e empoderamento, nossas utopias; de Porto Alegre, João Lucas Nunes, Venceslau, o professor Adão Zanadrea e a vereadora Bernadete Vidal; e, do Pará, Odete Lucas.

Da área de deficiência física havia Carlos Burle de Porto Alegre, arquiteto, grande pessoa. Foi embora tão cedo esse cara... Flávio Wolf, Rosangela Berman e José Gomes Blanco, do Rio; Talma Alvim, morta de forma tão estúpida, de Goiânia; Benício Tavares da Cunha Mello e Paulo Roberto Guimarães, de Brasília; de São Paulo, Maria de Lourdes Guarda; Alberto Nogueira de Curitiba. Havia, também, Manoel Marçal de Araújo, de Manaus. Grande Marçal! Tinha um menino do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morphan), Bacurau. Grande Bacurau!

Entrevistador: E os surdos? Você não falou de nenhum surdo.

Manuel Aguiar: Com os surdos havia a primeira barreira: a comunicação. Conhecia algumas pessoas, mas não tão de perto. Essa barreira passou a ser o grande divisor de águas daí para frente. Dos surdos eu teria de fazer um esforço muito forte para me lembrar dos nomes. Agora, com a chance da revisão, “cascavilhando” a memória e consultando alguns jurássicos, identificamos Ana Regina Campello e João Carlos Carreira. Mas ficou marcada essa história da barreira linguística – para mim muito séria – e que se reflete, hoje, na separação e na não participação deles no conjunto do movimento.

Por resolução da Organização das Nações Unidas (ONU), 1981 tornou-se o Ano Internacional das Pessoas Deficientes. Foi um grande marco para as pessoas com deficiência. No Brasil, em consequência desse ato da ONU, os governos criaram a Comissão Nacional e as comissões estaduais pró-organização de eventos, tanto para marcar atos e ações comemorativas como para refletir sobre a adoção de medidas viabilizadoras de melhorias no atendimento às questões dessas pessoas. Fui convidado pela presidente da Comissão Estadual para o AIPD e pela Diretora do Centro de Educação Especial de Pernambuco, Marinanda de Carvalho e Silva. A realização do Congresso, em Recife, foi proposta de Ednaldo Batista, então presidente da Associação de Deficientes Motores (ADM), de Pernambuco, acatada pela plenária do Encontro de Brasília, onde também nasceu a ideia da Coalizão.

O primeiro, e único, Congresso Brasileiro de Entidades e Pessoas com Deficiência, que hoje se vê reproduzido na Conferência Nacional das Pessoas com Deficiência, colocou, em Recife, representantes de organizações e pessoas envolvidas com a questão de todas as regiões do País. Fervilhavam as contestações e os questionamentos. A briga começa; a bela briga começa aí. No Congresso, então, além da programação científica, a Coalizão abriu o debate de nossa organização política e deu início ao processo de nossa autodeterminação e da construção das primeiras entidades representativas de pessoas com deficiência, imbuídas de nossos anseios e dirigidas por nós. Começamos nossa efetiva participação na construção de nosso destino.

Neste ambiente foram eleitos os membros da Coalizão Nacional e estabeleceram-se critérios de escolha e participação dos Delegados Estaduais e Regionais para, respectivamente, representá-los nos futuros encontros nacionais que aconteceriam em Vitória do Espírito Santo, em julho de 1982; de São Bernardo, julho de 1983; e do Rio, em dezembro de 1984, que teria como objetivo principal definir condições e formatar o novo Conselho Nacional da Coalizão, o único do qual não participei.

Aqui em Pernambuco, como uma das consequências desse espírito reivindicatório e de conscientização nasceu o primeiro Conselho Estadual de Apoio à Pessoa com Deficiência do país (CEAPPD), em janeiro de 1982, pelo Decreto n° 7.707. Em sua primeira composição, os cegos e surdos não participavam dele. Começamos, então, uma briga. Por que o Conselho só colocava deficientes físicos? Fomos ouvidos quase imediatamente. E um novo decreto, n° 8.817, de setembro de 1983, determinou nova composição, e lá estávamos nós, os surdos e os cegos.

Mas era um Conselho dominado pelos órgãos oficiais e clínicas que, majoritários, decidiam. Nós, quase sempre, éramos os revoltados, os radicais, rótulos que recebíamos quando defendíamos nossos interesses e propósitos. Mas, em consonância e como reflexo de nossa mobilização, em 1985, o pleno do CEAPPD me elegeu como presidente. Foi nesse ambiente e defendendo nossa participação no estabelecimento das ações que, em fevereiro de 1983, nasceu a APEC, da qual tive a honra de ser um dos fundadores e primeiro presidente.

Surgiu o Movimento Estadual pela Emancipação das Pessoas Portadoras de Deficiência (MEPES), bem como entidades de pessoas portadoras de deficiência, identificadas com os princípios defendidos pela Coalizão. Iniciei, a partir daí, ao lado do Messias Tavares – somos jurássicos no movimento –, meu efetivo envolvimento e participação no Movimento Estadual e Nacional das Pessoas com Deficiência e, claro, dos cegos.

O Movimento Estadual pela Emancipação das Pessoas Portadoras de Deficiência (MEPES).

Entrevistador: E o MEPES?

Manuel Aguiar: O MEPES foi uma coisa muito legal. Eu achava que nossa questão não podia ser discutida só dentro de nosso grupo. Tínhamos de juntar a turma toda. E, então, envolvemos pessoas do Sindicato dos Urbanitários, do qual eu fazia parte, do Grupo de Apoio à Pessoa com Deficiência (GAPPD) da Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF) e de outras organizações sociais. Messias Tavares foi seu primeiro e único coordenador. O MEPES começou a reivindicar. Encaminhava para o governo do Estado uma pauta de reivindicações com questões muito atuais.

Em 1983, realizamos o primeiro e único curso de programação para cegos do Norte e do Nordeste, para 17 alunos. Nessa época, a APEC ainda estava em formação e não tinha estrutura jurídica, por isso o apoio que a CHESF e a IBM deram foi para a Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes, da qual Messias Tavares era o coordenador.

O Ano Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD) e o Encontro de Recife.

Entrevistador: No Encontro de Recife, em 1981, aconteceu tanto o 1° Encontro Nacional de Entidades de Pessoas com Deficiência quanto o 1° Congresso Brasileiro de Pessoas com Deficiência.

Manuel Aguiar: Aconteceram juntos, no mesmo espaço. Mas com propósitos distintos: o 1° Congresso é um evento do AIPD; o 2° Encontro, uma oportunidade de continuarmos a articulação nacional do movimento, da Coalizão. O 1° Congresso também era uma forma de conseguirmos passagens e permitir que os companheiros pudessem se deslocar. Não tínhamos grana. Se hoje não temos, imagine naquela época!

Entrevistador: Quais as principais discussões nesse momento? Quais as tensões?

Manuel Aguiar: O grande mote era a libertação da tutela e do rótulo “excepcional”. Romper com o vínculo com o poder político e tutelador das pessoas com deficiência, à época representadas pelo Centro Nacional de Educação Especial (CENESP), a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), as clínicas particulares, a Legião Brasileira de Assistência (LBA), as Pestalozzis. Eles decidiam tudo por nós. O Ano Internacional marcou esse divisor de águas fortemente porque, mesmo o evento tendo sido dirigido pelas Comissões Nacional e Estaduais do Ano Internacional das Pessoas Deficientes, eles tiveram de engolir um bocado de sapos: ouviram críticas fortes. Minha gente, eram brigas de foice...

Entrevistador: Você disse que havia dificuldade de comunicação com os surdos. Havia hierarquização entre as deficiências?

Manuel Aguiar: Sim, sempre houve; até hoje ainda há. Houve poucas mudanças nisso e chamei muito a atenção dos companheiros para isso. Essa questão é tão forte e subjacente entre nós que acabou sendo uma das razões que provocou um racha na Coalizão. Respaldou a criação das federações por área de deficiência, algo necessário, mas nossas recíprocas rejeições em conjunto com a disputa pelo poder entre nós e pela ocupação dos conquistados espaços do Executivo puseram fim à nossa bela luta – a Coalizão.

Creio que foram essas as duas razões mais expressivas: o desentendimento entre as áreas de deficiência e a disputa das lideranças dentro das próprias áreas; a outra foi quando o movimento ao chegar ao poder, começou a sentar-se do outro lado do bureau.

A hierarquia entre as deficiências e o fim da Coalizão Nacional.

Entrevistador: Quais eram os desentendimentos entre as áreas de deficiência?

Manuel Aguiar: O problema era: o que nos unia? Vamos começar por aí. Unia-nos um objetivo comum: a luta contra a discriminação, a tutela. Isso era forte e nos unia. Mas, quando começamos a discutir nossas particularidades, os espaços de poder entre as áreas de deficiência, aí, como já disse, a coisa se complica. Você vai observar que em muitos momentos, principalmente nos encontros entre as áreas, não encontrará cegos e surdos em sua organização e coordenação. Encontrará a organização e coordenação, predominantemente, nas mãos das pessoas com deficiência física. Por quê? Essa é uma história que passa pelo aspecto da organização das áreas de deficiência: quem estava mais mobilizado, a origem social, quem estava mais vulnerável, naquele momento, ao nascer ou ficar deficiente.

Quem era organizado em 1981? Os deficientes mentais. Eles tinham o poder de força política, econômica e social do segmento; eles mandavam e desmandavam. Predomínio, hoje, ainda marcante. Então, restava quem? Os cegos, os surdos e os deficientes físicos lutando para nos organizar, para sermos respeitados e valorizados, para ganharmos visibilidade.

Qual é a origem social desse grupo? Aí está o nó da questão. Entre os deficientes físicos começaram a aparecer, no pedaço, o cara do acidente de carro, o professor, o estudante. Não era mais aquele que vinha da poliomielite. Então, a área começou a ter um enxerto de qualidade, no sentido de ganhar força de pessoas com formação, com conhecimento.

Os cegos e os surdos, em sua grande maioria, adquirem essa especificidade quase predominantemente pelas doenças endêmicas: rubéola, sarampo e avitaminose. E isso reflete onde? Na classe mais pobre. Essa me parece ser uma das razões que determinaram a divisão de poder entre nós e alimentaram nossas intolerâncias e disputas, tanto entre as áreas como internamente, nas respectivas organizações.

Então, se eu pudesse fazer uma hierarquia de organização e poder, esses estariam, naquele momento, assim distribuídos: a cabeceira, com as associações e clínicas para as pessoas “deficientes metais”; os deficientes físicos vinham a seguir; em terceiro, os cegos. Os cegos ganhavam dos surdos sabe por quê? Porque a gente grita, a gente fala; os surdos, não. Mais uma vez a barreira da comunicação e outras incompreensões na comunicação. A língua gestual não era aceita. Os surdos estariam na base dessa pirâmide; eram absolutamente tutelados.

Quando os surdos começam a “pintar” nas classes média e alta, as famílias se mobilizaram e surgiu, em Pernambuco, o Centro SUVAG de Pernambuco, orientado pelo Sistema Universal Verbotonal de Audição Guberiana, que marcou uma linha divisória no ensino e organização dos surdos. Esse era o perfil, que não mudou muito.

Então, veio a briga dentro do movimento. Tanto é que, quando conseguimos juntar quatro representantes de cada área de deficiência no Conselho Nacional da Coalizão, quem assumiu a coordenação da Coalizão? Quem ocupou a maioria dos espaços que o movimento estava conseguindo? Quem assumiu? Veja se havia surdo no pedaço! Veja se havia cego no pedaço! A maioria ficou com pessoas com deficiência física!

Entrevistador: Quais eram os espaços que o movimento conseguiu?

Manuel Aguiar: Nos Conselhos Estaduais e em alguns órgãos do Executivo. Aqui na terra, em 1985, tornei-me presidente do CEAPPD. Em 1986, Messias assumiu o comando do Programa de Apoio às Pessoas com Deficiência (PAD) de Recife e, a partir desse Programa, nasceu, em 1991, a Coordenadoria Municipal para Integração da Pessoa com Deficiência (CORDE/Recife), cuja primeira diretora foi Jurene Pereira Lins, uma das participantes do MEPES. No Rio, em 1986, Maurício Zeni elegeu-se presidente do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Creio que em Belo Horizonte, Luís Geraldo de Mattos ocupou um cargo no Executivo ou presidiu o Conselho de lá.

Entrevistador: De 1985 a 1988, você foi o delegado de Pernambuco na Coalizão.

Manuel Aguiar: Sim, um dos delegados.

Houve vários encontros estaduais e regionais. Neles, outros companheiros cegos também foram eleitos. Acho que éramos dez por região. Não me recordo mais. Era essa turma que ia aos encontros nacionais. Porém, com a divisão da Coalizão, a Organização de Entidades de Pessoas com Deficiência Física (ONEDEF) ganhou muita organização e força. Já na nossa Federação Brasileira de Entidades de Cegos (FEBEC), numa briga intestinal e antropofágica, nós, os cegos, ficamos a trocar tapas e beijos... Via-se dividir, mudar o rumo. Faziam, ao modo deles, acreditando ser esse o caminhar de nossos sonhos. Cada uma das áreas realizando, individualmente, seus encontros estaduais, regionais e nacionais. Mas não me recordo de, juntos, promovermos encontros nacionais de entidades e pessoas com deficiência.

Bem, vou falar, então, sobre o Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência. Foi em 1982, no Encontro de Vitória, que Cândido Pinto Melo propôs criar o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência, que só veio ser oficializado, creio, três ou quatro anos atrás. Cândido era uma das representativas lideranças do Movimento Estudantil de Pernambuco. Ficou paraplégico por causa de um tiro que levou de um major da Polícia Militar e, dizem, um dos participantes do Comando de Caça aos Comunistas (CCC).

A organização do movimento dos cegos.

Entrevistador: Por que os cegos trocavam “tapas e beijos”?

Manuel Aguiar: Porque havia dentro no movimento dos cegos duas linhas de pensar que se digladiavam muito: uma, que estava instalada institucionalmente, que se fundamentava, principalmente, no assistencialismo; a outra, que vem do movimento, que reivindicava direitos, empoderamento, cidadania.

É a grande divergência de foco, de concepção. E, para alcançar o comando, o poder, surgiram os oráculos da salvação, cegos que, por razões oportunistas ou por estarem alinhados ao poder econômico e institucional, tornaram-se lideranças nacionais. Mas a maioria deles nunca fez parte do movimento que gestou a Coalizão. Oportunistamente agregaram-se a ele quando perceberam que estavam ficando para trás. E, aí, vale tudo. Então, a FEBEC e suas afiliadas tornaram-se o alvo. Para tomar os postos de direção, era necessário que as afiliadas fossem conquistadas e aí, subjugá-las e alinhá-las ao pensamento e à direção dos oráculos da salvação. A cooptação e os meios para que isso ocorresse não foram os mais éticos. Assim, lá se foi a nossa FEBEC, envolvida pelas promessas de grana e poder. E o movimento dos cegos fracionou mesmo, pelo menos no Rio e em parte do Nordeste, de que tenho conhecimento e me lembre agora, porque uma das causas era a briga pela sobrevivência, do espaço e do bolso.

E isso é muito forte: é pouco espaço para muita gente. E quem não gosta de ter visibilidade? E um grande problema é como fazer que essa visibilidade seja para todos e não somente para o próprio umbigo. Isso fracionou e tem fracionado as áreas e o movimento.

Entrevistador: Você falou sobre a divisão no movimento dos cegos. Havia o Conselho Brasileiro para o Bem-Estar do Cego, a União Brasileira dos Cegos, a FEBEC e, recentemente, foi criada a Organização Nacional de Cegos do Brasil (ONCB). A ONCB, hoje, representa todos esses setores?

Manuel Aguiar: Diria que não, que não tem essa representatividade. É uma organização com foco no assistencialismo. Os atuais “líderes dos cegos” buscam apagar a FEBEC, como se, assim, eliminassem duas coisas: sua origem e o seu recente momento que se revelou não muito profícuo e ético. Para tanto, criaram outra organização, cujo nome, coincidentemente, se assemelha ao da ONCE (ONCB). Fazem isto por quê? Por que as nossas demandas ficam à mercê de momentos eleitoreiros, nas eleições, nas nossas organizações representativas ou viram mote de campanha nas eleições gerais. Mas algo fica à mostra com essas manobras. Por que, em todo Brasil, há pessoas cegas que pularam fora desses processos? Por que nossas demandas nas esferas estadual e federal se arrastam? Por que outras áreas de deficiência conseguem ter eco nas várias instâncias do poder e os cegos, não?

Fatos reveladores disso são: os surdos conseguem que a Libras seja a sua primeira língua no País, conseguem que seja obrigatória nas universidades federais e particulares; criam o seu Dia de Luta (26 de setembro), distinto do 21 de setembro. Quem é que tem mais poder de fogo hoje no Movimento das Pessoas com Deficiência? A ONEDEF, porque conseguiu organizar-se, estruturar-se. Mesmo com seus embates intestinais, mas não antropofágicos. Um de seus participantes, Gerônimo Ciqueira, chegou à Câmara Federal representando Alagoas.

Entrevistador: Vamos voltar a 1982, à criação do Conselho Estadual de Recife. Como foi a mobilização para criar o Conselho?

Manuel Aguiar: Quando acabou o 1° Congresso Brasileiro de Pessoas Deficientes, o movimento priorizou alguns encaminhamentos que ficaram para ser realizados, dando continuidade à nossa luta: o de envolver o Poder Público e a sociedade civil, por meio de conselhos. Veja, quando é que se vem a falar em conselhos? Em 1988, que é quando começa o controle social, e nós, lá atrás, já falávamos de Conselho. Esse era o vínculo que queríamos para comprometer o lado do poder. Saiu, então, o Conselho de Pernambuco. Depois foi o de Fortaleza, o do Rio e Curitiba, dentre aqueles de que me lembro agora.

Houve um Encontro de Conselhos em Curitiba (5° Reunião de Entidades Nacionais, Conselhos, Assessorias e Coordenadorias de Pessoas Portadoras de Deficiência), em 1987, creio. Houve um primeiro em Fortaleza, e depois, o de Curitiba, já com 11 ou 12 Estados e municípios com conselhos.

Entrevistador: Você foi o primeiro presidente do Conselho?

Manuel Aguiar: Fui o primeiro presidente com deficiência.

Entrevistador: Quando você assumiu a presidência?

Manuel Aguiar: Foi em 1985, creio. Era um período de dois anos, podia ser reeleito, mas parece que depois de mim foi Messias Tavares.

Entrevistador: Que avaliação você faz da atuação e da importância do Conselho hoje?

Manuel Aguiar: Hoje, aqui em Pernambuco, ele está parado. Os conselhos estão muito fragilizados.

Entrevistador: Até o CONADE?

Manuel Aguiar: Até o CONADE. Eles estão fragilizados porque o movimento está fragilizado, o movimento está disperso. Ele não tem mais a força que tinha e, é aquilo que eu disse, muitos de nós que ficamos atrás do bureau nos distanciamos do movimento. Os encontros são promovidos pelos órgãos oficiais.

As organizações perderam força, algumas lideranças já mudaram de espaço. E isso ocorre tanto na esfera municipal quanto nas esferas estadual e nacional.

Temos de ter o Estado ao nosso lado. Porém, não devíamos nos esquecer das necessidades e reivindicações dos nossos companheiros; por isso, hoje sou um dos críticos dessa postura. Mas como devemos proceder? Temos de pensar e reconstruir esse caminho. Por criticar a inoperância do porquê isso ocorre, não sou mais uma pessoa grata ao movimento, principalmente o dos cegos.

Mas não penso que isso acontece somente entre os cegos. Mas houve quem, mesmo com suas revoluções intestinas, ganhasse organização e força. Os surdos estão mais organizados hoje do que os cegos, por incrível que pareça. Acho, porém, que eles estão em um caminho um pouco perigoso, de isolamento, tanto que há o Dia Nacional dos Surdos, que é vizinho ao dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência: 26 de setembro!

Entrevistador: Fale um pouco sobre o seu trabalho na APEC.

Manuel Aguiar: É um trabalho que me deixa muito feliz. A APEC foi um propósito, com um conjunto de companheiros que vinham das mais diversas realidades, até mesmo realidades bem distantes da minha realidade social. Ela surgiu com a proposta de ser uma entidade de reivindicação e fizemos uma série de discussões e encontros estaduais de cegos, encontros regionais, fóruns de debates que foram levando os companheiros a tomar consciência de si e de seus direitos como cidadão. A APEC chegou a ser tão contestada que o diretor do Instituto de Cegos disse: “O cego que andar com Manuel não entra mais no Instituto”. O Instituto de Cegos era assistencialista e o dono daqueles “ceguinhos” que estavam ali.

Em 1986, acredito, criamos o que chamamos de Centro de Reabilitação da Percepção Visual (CERV). Com que comecei a conviver e o que passei a constatar? Que a maioria dos companheiros cegos não tinha pulado corda, não tinha pulado academia, amarelinha para vocês, não andava de bicicleta, não conhecia as formas físicas de um ônibus, não dançava, etc. O CERV fez isso. Foi uma confusão danada. Além da falta de recursos para tocar o CERV, os órgãos oficiais de Educação Especial diziam que nós estávamos colocando os cegos em risco... Como é que um cego vai conhecer um ônibus? Tem de apalpar o ônibus. Para o ônibus aqui e apalpa essa porcaria aí, entra e mexe, tira sua dúvida do que é isso, o que é aquilo. Andar a cavalo, subir em árvore. Esse foi o CERV, que faliu por falta, primeiro, de recursos e, depois, por ousar contestar conceitos ou preconceitos...

Entrevistador: Vocês não conseguiram recursos de ninguém?

Manuel Aguiar: A prefeitura bancava a casa, mas nós não conseguimos dinheiro. Não era o momento, creio; as empresas não acreditavam, não se falava em responsabilidade social e era um cara cego que estava trabalhando com um segmento cego minoritário, os coitadinhos. Morreu o CERV.

Vou fazer um parêntesis para contar dois fatos que aconteceram, porque me lembrei que lá atrás, quando falamos da APEC, não falei disso. Nós fizemos um convênio para estágio e emprego para cegos com a prefeitura de Recife e com o governo do Estado: um, penso, em 1986, com a prefeitura. Esse, acredito, era o primeiro convênio que oferecia estágio para pessoas cegas ou com baixa visão na função de telefonista.

O convênio com o Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Pernambuco (IPSEP), que teve início em 1997, 1998. O IPSEP contratou cegos e pessoas com baixa visão para trabalhar na função de auxiliar técnico de câmara claro-escura e telefonia. A Secretaria de Saúde também contratou na mesma função, mas como estagiários, agora nos hospitais da rede pública estadual, na Região Metropolitana. Isso foi muito legal porque, além de dar estágio, emprego e experiência profissional, com a convivência, iniciou-se nesses ambientes a desconstrução da cultura da invalidez.

Há mais um detalhe: a APEC um dos primeiros a levantar a discussão sobre rótulos em Braille nas caixas dos remédios. E, em 1998, o LAFEPE de Pernambuco começou a fazer isso. Com o apoio da APEC, começou a fazer e contratou, para isso, duas ou quatro pessoas cegas, não me lembro do nome delas. Escreviam nos rótulos, em Braille, os nomes dos remédios e os colavam nos vidros. Muito artesanal. O projeto morreu porque mudou a direção do LAFEPE. Aí veio o cão-guia, outra proposta nossa. Fizemos uma parceria com a Polícia Militar do Estado, por intermédio do Major Fernando Gonçalves, então comandante da Companhia Independente de Policiamento com Cães (CIPcães) e a empresa Socil Guyomarch. A PM cedia os adestradores e, também, com o apoio do major, um entusiasta da ideia, conseguimos com a Socil Guyomarch a ração para o cão, enquanto estivesse em treinamento. Para a APEC, caberia disponibilizar o profissional de convivência com os cegos: uma técnica em locomoção, reabilitação/habilitação e atividades da vida diária (AVD).

Atuação e conquistas na Constituinte.

Entrevistador: Como foi sua participação na Constituinte e como foi o processo de organização do movimento para as propostas que eram levadas aos deputados constituintes?

Manuel Aguiar: Houve três encontros de coordenadorias e conselhos, entre 1986 e 1987, no Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília. E nesses, sim, ocorreram os debates sobre elaboração de propostas para a Constituinte. Foi nesses momentos que discutimos e elegemos assuntos e reivindicações que gostaríamos que fizessem parte da nova Constituição. Desses encontros surgiram, foram discutidas e votadas as propostas para serem levadas para a Constituição. Nós tínhamos em mãos o que havia sido aprovado nos encontros. Então, foi feita essa articulação. Como íamos conseguir um bocado de passagem para ir a Brasília, gente deste “Brasilzão” todo?

Propusemos que cada área se organizasse para fazer presença no Encontro de Brasília, e, lá, a pessoa escolhida para apresentar as propostas foi Messias. Creio que Messias era o coordenador, nesse momento, da ONEDEF. O resto... quanto mais, melhor. Tivemos lá uma meia dúzia de cegos, deficientes físicos houve muitos mais – eles tinham maior poder – e alguns surdos.

Entrevistador: O senhor se lembra dos nomes dos deficientes físicos?

Manuel Aguiar: Paulo Roberto Guimarães e Rosangela Berman. Eu não me podia esquecer do nome dessa mulher, grande Rosangela. Eta mulher de luta, de fibra! Tanto que hoje é evidência mundial, fundadora do Centro de Vida Independente (CVI) no Brasil! Foi assim o processo: nós fomos para os corredores, eu empurrando a cadeira de rodas e o cara da cadeira de rodas sendo o meu guia.

Entrevistador: Os surdos também participavam?

Manuel Aguiar: Participavam, participavam, sim. O que deu discordância foi a participação da área dos deficientes mentais, porque eles não corroboraram muito as nossas propostas. Isso era óbvio, mexia com o poder deles. Mas as três áreas – auditiva, física e visual – estavam unidas, sim, na Constituinte; estavam unidas.

Entrevistador: Temos muitas referências de que, a partir do Encontro de 1983, em São Bernardo, é que se decidiu pela criação das federações por área de deficiência.

Manuel Aguiar: Sim.

Entrevistador: Mas a Coalizão continuou existindo? De que forma?

Manuel Aguiar: Ela continuou, mas não continuou...

Entrevistador: Por causa dos encontros que vocês fizeram em 1987, antes da Constituinte?

Manuel Aguiar: Não em razão desses encontros. No Encontro de São Bernardo é que começou a surgir a questão das especificidades por área do segmento. Chegamos à maturidade de dizer o seguinte: a Coalizão tem de representar o todo; ela não pode representar as áreas individualmente, porque ela não tem esse conhecimento. Essa foi uma decisão sábia: vamos criar as federações, que vão focar os interesses específicos de cada área, mas vamos manter a Coalizão. Naquela época, em São Bernardo, já se achava que ela não ia para frente. Acho que é no Rio que ela acabou morrendo. Foi no Rio, em uma reunião, não me lembro mais quando, 1984..., da qual não participei. Mas houve, ainda, uma tentativa de manter a Coalizão. Depois o foco foi a Constituinte.

As federações surgiram exatamente por causa disto: tínhamos que olhar para as nossas especificidades, o que não conseguíamos colocar na mesma mesa na Coalizão. O cego falava de livro em Braille; o cadeirante e o muletante falavam em rampa, em carro adaptado; o surdo falava de uma língua dele. Esse discurso, para o conjunto da Coalizão, não era discussão prioritária; a Coalizão era um poder político.

Entrevistador: Na Constituinte, a discussão dos direitos das pessoas com deficiência estava na Subcomissão das Minorias. O movimento se articulou com outros setores da sociedade civil?

Manuel Aguiar: Não, não, não. Creio que nenhum movimento se articulou com os outros. Havia um foco muito forte dos interesses individuais, de cada grupo. Era a primeira vez que, depois de 25 anos, os grupos discriminados, desfavorecidos socioeconomicamente tinham a oportunidade de falar, reivindicar.

Foi na Constituição de 1988 que eu, “o segmento”, sou pessoa; antes, eu, “o segmento”, não era pessoa. Foi lá que tiramos o “excepcional”. Um grande marco é você deixar de ser chamado de excepcional para ser chamado de “pessoa portadora de deficiência”. Tenho, portanto, 21 anos como “pessoa”. Isso é um marco.

Surgiu, depois, a CORDE e a Lei na° 7.853, de 1989. Aí você começa a perceber quando o movimento perde força: o Decreto n° 3.298, que regulamenta a Lei n° 7.853, surgiu quantos anos depois? A CORDE é de 1989 e o decreto é de 1999! Dez anos depois!

Entrevistador: Que avaliação você faz das conquistas do movimento na Constituição?

Manuel Aguiar: Tivemos grandes conquistas. Foi a primeira vez que o segmento foi referenciado em vários capítulos e artigos em uma Constituição brasileira. Na Saúde, na Seguridade e na Assistência Social, no Trabalho, na Acessibilidade, e não somente na Educação. Tudo, para nós, caía onde? Na educação! Tudo, cara. Você passa a ser reconhecido como um ser completo, não um excepcional atendido por A ou por B, “tutores”. Isso foi um marco, uma conquista de nossa Luta. Foi um divisor de águas. Como lhe disse, passei a ser uma pessoa.

Veja que em 1978 o deputado Tales Ramalho propôs uma Emenda à Constituição e a teve aprovada. Era 1978, e não aconteceu nada. Nada além do marco institucional histórico. O nosso status social ficou o mesmo. Mas eram os bons presságios de inovadores e novos tempos para nós! Não aconteceu nada porque era personificado, não houve nenhuma mobilização dos “excepcionais”. Foi um parlamentar que ficou deficiente, chegou ao Congresso e, emocionalmente, aprovaram.

Há normativos legais federais, estaduais e municipais assegurando e regulando nosso acesso a direitos, serviços e produtos, individual e coletivamente, e o usufruto deles, consequência de nossa mobilização, organização, na década de 1980, da luta do movimento. Agora, o movimento não está tendo força para colocar isso para correr. Esse é o nosso maior problema: nós nos acomodamos. E pode-se verificar isso olhando a distância entre a data das leis e a data dos decretos que as regulamentam.

Hoje você tem políticas, você pode avaliar se elas são boas, se são ruins, você pode fazer um discurso sobre isso. O foco do movimento virou para outros objetivos, e as associações passaram a ser prestadoras de serviço; perdemos em mobilização. O movimento perdeu forças; nesse exato momento, ele perdeu forças.

Entrevistador: Na década de 1980, as especificidades regionais eram abrigadas nas discussões nacionais? Ou o Sudeste estava mais presente?

Manuel Aguiar: Sim, havia como há até hoje. Em tudo o que há, como os recursos, o Sudeste está na frente. Os recursos pintam, e as pessoas com deficiência inseridas socialmente, na sua maioria, lá estão. Com algumas de cá, porque vão daqui para lá. Por exemplo, na FEBEC, o Nordeste nunca conseguiu eleger um presidente. Conseguiu agora: Antônio José assumiu a presidência da Organização Nacional dos Cegos do Brasil (ONCB), substituindo a FEBEC e trazendo cara de aglutinador. Por quê? Porque os tradicionais e habituais líderes perderam força política e têm o discurso desgastado, ou porque houve identificação de pensamento.

A CORDE.

Entrevistador: Você participou do processo de criação da CORDE?

Manuel Aguiar: Não. Não participei.

Entrevistador: Em que repercutiu, no movimento, a criação da CORDE?

Manuel Aguiar: Veja, não repercutiu como queríamos. Nosso desejo era que uma pessoa com deficiência dirigisse a CORDE. Esse era um dos nossos objetivos. Quando a CORDE surgiu, Teresa d’Amaral assumiu pela primeira vez. E houve a decepção do movimento. Depois, assumiu a Izabel Maior, primeira pessoa com deficiência a dirigir a CORDE. É deficiente física, que soube articular e angariar apoio. É uma pessoa muito competente, muito preparada, mas não veio do movimento.

O Movimento das Pessoas com Deficiência do Rio Grande do Sul tentou fazer um nome, Carlos Humberto Lippo, deficiente físico, que é um menino muito bom. Ele foi diretor da Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para Pessoas Portadoras de Deficiência e de Altas Habilidades do Rio Grande do Sul (FADERS). O que acontece é que o movimento não está mais unido. Eu acho que a CORDE perdeu força, muita força.

Entrevistador: Por quê?

Manuel Aguiar: Porque a CORDE ficou distante do movimento muito tempo.

De 2000 para cá, a CORDE começou a renascer, mas ela perdeu força, perdeu status, inclusive. Não sou defensor de, por exemplo, secretaria para deficiente. Não defendo esse tipo de coisa; defendo uma coordenação nacional da pessoa com deficiência forte e com representação de todas as áreas. Secretaria, não.

Entrevistador: Por quê?

Manuel Aguiar: Porque é segregar. São Paulo criou a Secretaria da Pessoa com Deficiência e espero que não caminhe para o que imagino, autossegregação, exploração do “deficiente”, das tais “discriminações positivas”, das políticas especiais e assistencialistas. Desatrelada do todo. E o discurso da inclusão, fica como? Então, creio que a CORDE precisa acordar. Qual coordenadoria nacional tem apenas meia dúzia de pessoas trabalhando nela? E com os ínfimos recursos que tem, com uma abrangência do tamanho do Brasil? Como pode ser presente, eficiente e mobilizar a turma? A coordenadoria nacional deveria ter cegos, surdos, deficientes intelectuais lá dentro. Sabe qual foi uma das maiores experiências na minha vida? Fui titular da Superintendência Estadual de Apoio à Pessoa com Deficiência de Pernambuco e tinha um discurso: “Só trabalho junto com as quatro áreas”. E fiz isso. Lá coloquei, na assessoria, técnicos e estagiários, cegos, surdos, cadeirantes, muletantes, pessoas com diferença cognitiva. Aí que conheci e vivenciei a diversidade e dei outro pulo do gato na minha vida.

Creio que lá em cima, na CORDE, está faltando também isso. Sabe por quê? Isso não é discurso teórico, não. Porque eu, cadeirante, cego, surdo, vou puxar para mim. Vou priorizar meus interesses. Se tiver um cego do meu lado, um surdo do outro e um companheiro com deficiência mental na minha frente, vou estar ligado que quando fizer uma política, uma ação, tenho de olhar isso aí!

Sou contra a criação de secretarias pelo Estado. Mas creio que deve-se ter a secretaria de cidadania, se possível, no Estado contemplando todos. Porque, criando-se, como já disse, secretarias para todo os que estão discriminados, acaba-se segregando de novo. A questão [da deficiência] é transversal. O mal que nos fizeram é que tudo nosso ficou sufocado na educação. E onde está o trabalho, a saúde, o lazer, o esporte? O CONADE ganhou algum poder, mas precisa ser mais atuante. Passaram pessoas muito boas naquele Conselho, muito comprometidas com a causa.

Entrevistador: Você tem uma experiência ampla de participação em conselhos. Eu queria sua opinião sobre essa instância deliberativa.

Manuel Aguiar: Teoricamente, acredito que não deveria haver Conselho de Direitos das Pessoas com Deficiência coisa nenhuma! A pessoa com deficiência deveria estar no Conselho de Saúde, no Conselho de Assistência Social, no Conselho da Criança e do Adolescente... Deveria estar lá assentada e garantindo o seu pedaço. Assim, estaríamos lá, em conjunto com todos, decidindo a política nacional dos órgãos oficiais – estaríamos discutindo no Conselho de Assistência Social a parte que nos toca naquele latifúndio.

Agora, no momento em que se cria o Conselho da Pessoa com Deficiência – veja que contraditório você vai dizer que sou, mas esse é o mote –, já que vai existir, tem de ser efetivo, tem de funcionar. Se não, já está morto, porque ele perde força, pois não consegue nem se articular.

A Superintendência Estadual de Apoio à Pessoa com Deficiência (SEAD).

Entrevistador: Você foi superintendente na SEAD. Fale um pouco sobre esse período na Superintendência.

Manuel Aguiar: O superintendente era fruto de uma eleição promovida pelo Conselho da Coordenadoria. Saía dessa eleição uma lista tríplice, e o secretário, com o aval do governador, escolhia e indicava o novo coordenador.

Então fui eleito e nomeado pelo governo como coordenador. Quando assumi a Coordenadoria, era algo deprimente. Ela ficava nos fundos de um casarão, na Avenida Norte, duas salas, não estou exagerando não. Refletia o descaso que o órgão sofria. Havia lá umas mesas, uns bureaux, um computador quebrado, uma linha telefônica e seis cargos em comissão – assessorias: uma na área de educação, do trabalho, do transporte, outra no direito e outras de que agora não me recordo.

O coordenador poderia nomear seis pessoas, e minha primeira providência foi escolher gente que nunca tinha trabalhado com pessoas com deficiência. Como vinha do movimento e conhecia da história, sabia ainda que muitas das pessoas que haviam passado por ali estavam vinculadas a uma cultura estigmatizante e carregada de preconceitos. Eu queria pessoas que não estivessem amarradas a conceitos tradicionais. Assumi em fevereiro, e até agosto havia quatro pessoas e nada mais; não conseguia nada, nem um computador novo... Mas já havia sido criada a Semana Nacional da Pessoa com Deficiência, e aproveitei o mote para criar a Semana Estadual da Pessoa com Deficiência, em 2000.

O que eu queria? Dar visibilidade ao órgão e nos mostrar à população. Então, organizamos um evento na Praça do Carmo, no Centro do Recife. Fizemos um auê na Praça do Carmo. Passeata com escola, meninos, com carro de som. Deu visibilidade. Só que, na minha cabeça, a Semana da Pessoa com Deficiência não era um evento para tirar retrato nem para ser folclórica: ela teria como processo mostrar, evidenciar que esse público existe e que faz um bocado de coisa. Começamos a dar-lhe dimensão, e foi uma estratégia pensada para atender a esse objetivo. Foquei minha administração; 70% foram para envolver o interior.

As ações da semana foram crescendo e envolvendo cada vez mais pessoas e municípios. E, em 2006, na última que organizamos, atingimos 130 municípios – Pernambuco tem 185 municípios.

Aí, uma mudança aconteceu. Mudou o secretário e a Dra. Lígia Leite assumiu a Secretaria de Cidadania e Assistência Social. Fui à primeira entrevista com ela levando minha lista de reivindicações. Ela considerou as reivindicações e o projeto, e começamos a nos entender às mil maravilhas. Fui convidado, pela primeira vez, como superintendente, para sentar-me à mesa da reunião de planejamento da Secretaria. Isso, em 2005. Apareceram recursos financeiros, materiais e uma nova sede...

Uma coisa que modificamos foi a forma de identificação da pessoa com deficiência, que habitualmente se faz assim: vai falar de pessoa com deficiência, o folheto traz a imagem de um cego, que é óculos escuros e bengala; o surdo, com a orelhinha cortada; o deficiente mental, que tem os olhos puxados; e o físico, que é uma cadeira de rodas. Inovamos, creio, essa história.

Queríamos produzir um folder para a SEAD, mas um folder diferente desse padrão. Um belo dia, apresentei a foto do mundo visto do espaço e envolvido pela frase: o mundo gira e a cada volta fica diferente. “Mas Manuel, isso não tem nada a ver com deficiência” disseram. “Pelo contrário”, eu disse, “isso tem tudo a ver, tem a ver com a diferença”. A diferença está no mundo desde que o mundo é mundo e é um conceito dinâmico. Bom, ficou essa a marca da SEAD.

Entrevistador: Seu período na Superintendência coincide com o período em que ocorreu a 1ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Vocês se envolveram na organização?

Manuel Aguiar: Sim, muito! Pernambuco fez cinco conferências regionais. E lá fomos nós para Brasília. E Pernambuco teve uma presença efetiva nas discussões.

Entrevistador: Como você avalia essas conferências, os ganhos e as dificuldades para o movimento?

Manuel Aguiar: Volto a dizer que se as conferências acontecessem com o apoio do Estado e com maior organização do movimento, elas seriam mais autênticas, mais movimento. Mas, como estamos muito fragilizados, quem termina fazendo tudo é o governo. Se temos no governo uma pessoa que conhece o movimento, ela busca as pessoas do movimento, prioriza nossas questões, além de saber quem é quem, quem está comprometido. Mas, se não temos alguém que tem essa vivência, ou uma pessoa com experiência e foco no assistencialismo, ela vai pelo assistencialismo.

Só acredito que sairemos dessa escravidão de tutelados, de submissão, de exclusão, se conseguirmos autodeterminação, empoderamento; se conseguirmos ser cidadãos mesmo.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

Entrevistador: Qual é sua opinião sobre o Estatuto?

Manuel Aguiar: Creio que o Estatuto tem um mérito: ele criou uma discussão, propiciou, no Legislativo, do Congresso, um foco para discussão de nossas questões. Isso é muito bom. Propõe a ser um Estatuto, um manual das leis da pessoa com deficiência. Os seus defensores dizem que isso é bom porque fica tudo compilado em um único local. A princípio, até defendi essa tese. Depois, comecei a refletir na minha história, no que acredito, e vi que estava errado; para mim está errado. O Estatuto não é necessário. Daqui a pouco vamos ter Estatuto de índio, do negro, da mulher, do homossexual, Estatuto e Estatuto... Precisamos é de uma legislação para todos; uma legislação que atenda a todos os segmentos da sociedade.

Começa essa história de discriminação positiva. Eu não quero ser discriminado, nem positiva nem negativamente. Quero ser cidadão com direitos constitucionais que todos têm e mais os que me fizerem ser igualitária, autônoma e equanimemente cidadão.

Em razão de o movimento priorizar a discussão, a ratificação e a consolidação, pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pelo Brasil, da Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, o Estatuto ficou para depois. Ainda bem. Temos mais tempo para amadurecer essa questão. Que bom que a discussão dele foi suspensa por causa da Convenção – que bela que ela é. Ela dá outra visão da questão, a visão da pluralidade, a começar pela definição do que é deficiência. É por aí que eu vejo o Estatuto. Mas temo que caiamos, de novo, nessa história de que para nós tudo tem de ser especial. O velho estigma. Então, não criem Estatuto, proponham a lei! O problema não será resolvido com Estatuto. A solução é ter a lei. Proponha-se uma lei sobre acessibilidade e pronto, acabou. Para que um Estatuto? Já não há a Constituição? Mas volto a dizer: vai ganhar o Estatuto, vai ser aprovado. Em 2010, haverá eleições, e dá IBOPE falar de deficiente.

Entrevistador: Mas que avanços efetivos ela trouxe?

Manuel Aguiar: Ela tem dois avanços: o primeiro é conceitual – a definição de pessoa com deficiência. Não coloca a questão do impedimento físico, mental e sensorial como o maior e, quase sempre, único obstáculo para que aconteça a inclusão. São as barreiras existentes na comunidade que mais agravam e impedem o real reconhecimento de nossas especificidades, necessidades e limitam o nosso pleno exercício da cidadania. Ela só tem um cacoetezinho do qual não vamos nos livrar muito cedo: a palavra “deficiente”. Esse estigma é bravo, porque, quando você me chama de deficiente, você é o quê? É eficiente.

E ela tem outra vitória: ela conseguiu ser discutida coletivamente, internacionalmente. Ela é rica por isso, porque foi construída coletivamente por diversos povos – não foram diversos grupos sociais, foram povos: Europa, França e Bahia. E isso é belo. Deu no que deu, foi a primeira Convenção da ONU do século XXI, o que também é outro marco. Vitória para nós.

Avaliação do movimento e desafios futuros.

Entrevistador: Quais foram os momentos mais importantes para o Movimento das Pessoas com Deficiência e quais os desafios futuros?

Manuel Aguiar: Como marco há o Ano Internacional das Pessoas Deficientes. Isso é um divisor. Outro marco é a Constituição, quando passamos a ser pessoas. Depois, como consequência desse movimento todo, você tem as políticas públicas que hoje existem: federais, estaduais e municipais. Muitas delas até nascidas de forma equivocada, mas que trouxeram ao foco a nossa questão. E aí a pergunta é: Parou por quê? Por que parou? Sobre isso é que temos de refletir. Temos que só viver o agora? E o agora que nós conquistamos? Vai ficar nisso? Melhor legislação das Américas, mas por que ela não acontece? Porque gestores públicos e gestores do movimento não estão cobrando. Um não cobra e o outro não faz. Quem teria a obrigação de primeiro fazer? É o primeiro que descumpre: é o gestor público.

Historicamente nós viramos a página do excepcional, quebramos o poder do tutelador, estamos fazendo a escola inclusiva, e espero que ela seja plural. Por fim, a ratificação e aprovação, pelo Congresso Nacional, da Convenção e seu Protocolo Facultativo sobre Direitos das Pessoas com Deficiência é o mais recente marco e desafio.


Do livro: "História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil".
Presidente da República: Luiz Inácio Lula da Silva.
Ministro de Estado Chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República: Paulo Vannuchi.
Secretária Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência: Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior.

Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura – OEI.
Secretário-Geral da OEI: Álvaro Marchesi.
Diretora da OEI no Brasil: Ivana de Siqueira.

Ficha Técnica da entrevista:
Entrevistadores: Mônica Bara Maia e Deivison Gonçalves Amaral
Local: Recife-PE
Data: 15 de maio de 2009.
Duração: 3 horas e 28 minutos.

Reprodução autorizada, desde que citada a fonte de referência.
Distribuição gratuita. Impresso no Brasil.
Copyright 2010 by Secretaria de Direitos Humanos.
Tiragem: 2.000 exemplares - acompanhados de cd-rom com o conteúdo em OpenDOC, PDF, TXT e MecDaisy - 1ª Edição - 2010, 50 exemplares em Braille.

Este livro faz parte do Projeto OEI/BRA 08/001 - Fortalecimento da Organização do Movimento Social das Pessoas com Deficiência no Brasil e Divulgação de suas Conquistas.

Referência bibliográfica :
Lanna Júnior, Mário Cléber Martins (Comp.). História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2010. 443p. : il. 28X24 cm.
Ficha Catalográfica:
H673 História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil / compilado por Mário Cléber Martins Lanna Júnior. - Brasília: Secretaria de Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2010. 443p. il. 28x24 cm.