Responsabilidade Social não é Caridade.
O sistema produtivo é um espaço importante no processo de inclusão. A socióloga Melissa Bahia, 28 anos, que lançou essa semana em Salvador o livro Responsabilidade social e diversidade nas organizações: Contratando pessoas com deficiência, pesquisou o panorama sobre a questão no Brasil e aponta elementos que podem nortear os princípios da inclusão e da diversidade nas organizações.
Segundo o censo do IBGE, em 2000, o Brasil possuía 24,6 milhões de pessoas com deficiência, o que representa 14,5% da população. Deste contingente, 15 milhões tinham entre 15 e 59 anos, idade produtiva, porém apenas 51% estavam trabalhando. Outro dado apontado pelo censo é que 23% das pessoas com deficiência com idade de atuar no mercado de trabalho sobreviviam com uma renda mensal de até um salário mínimo. A pesquisadora, que aos 15 anos perdeu a visão, destaca que se a legislação que prevê cotas em empresas com mais de cem empregados realmente fosse cumprida, considerando o percentual mínimo de 2% de reserva de vagas, haveria apenas 600 mil postos de trabalho.
Entrevista com Melissa Bahia
Correio da Bahia - O que falta para que realmente aconteçam mais contratações e inclusão do deficiente no mercado de trabalho?
Melissa Bahia- Abertura, conhecimento das empresas com relação às potencialidades e às limitações das pessoas com deficiência. É entender que esse público possui competências, é um público capaz de trabalhar e colaborar com o crescimento da organização. Por outro lado, acredito que falta, "empoderamento" (do inglês empowerment, utilizado para designar um processo contínuo que fortalece a autoconfiança de grupos populacionais desfavorecidos) das pessoas com deficiência. No sentido de ir às ruas, mostrar que existe, se qualificar. Precisa ganhar postura de profissional.
Correio da Bahia - Mas essa qualificação não é prejudicada pela própria estrutura educacional, ou social, que continua excludente para o deficiente?
Melissa Bahia - Na verdade é um problema de base. A inclusão no mercado tem uma ponta lá atrás que é a base escolar. É preciso fazer um trabalho de conscientização na sociedade e em todas as instituições. Começando pela família, que precisa entender que aquele indivíduo com deficiência é capaz, então, tem que ir para a escola, tem que se profissionalizar como qualquer outro indivíduo. Se a família não dá esse suporte, já começa a ficar difícil. Depois passa pela escola, com as mesmas dúvidas do mercado de trabalho - apenas as noções que são diferentes: o que é que faço, que tipo de suporte tenho que dar, como coloco esse aluno na sala de aula? Em cima dessas dúvidas que os trabalhos devem ser desenvolvidos.
Correio da Bahia - E no seu caso, por exemplo? Como foi esse processo?
Melissa Bahia - Eu perdi a visão com 15 anos. Então foi me colocada a situação: ou continuava ou parava aos 15. Parar aos 15 anos não dá. Eu tive e tenho uma estrutura familiar que me possibilitou continuar na mesma escola que estudava, tive todo um apoio pedagógico e uma condição de me preparar para chegar onde estou hoje. Mas a gente encontra obstáculos, não é tão simples assim. Mas mesmo sendo difícil eu vi como uma possibilidade. É um caminho que eu tenho para seguir e eu vou seguir. Então eu fui, comecei a conhecer outras pessoas cegas e me envolver mesmo com essas questões. Conheci gente de todo o país, gente de fora, de Espanha e Portugal, com experiências bem-sucedidas.
Correio da Bahia - E nesses países, por exemplo, existe lei de cotas?
Melissa Bahia - Não. A inclusão parte de uma questão cultural. Em São Paulo, passei um mês vivenciando a realidade de uma ONG chamada AME (Associação Amigos Metroviários Excepcionais), que atua na colocação de pessoas com deficiência no mercado. É uma assessoria que desenvolve todo um trabalho. Desde a sensibilização com gestores, como esses profissionais vão lidar com os funcionários com deficiência, até uma análise de posto de trabalho. É desenvolvido um levantamento para saber em qual posto se coloca determinado tipo de deficiências. Vai se fazer também um diagnóstico de acessibilidade daquela empresa. Está preparada para receber, por exemplo, um cadeirante? Ou uma pessoa com deficiência auditiva? Então pude vivenciar de perto este trabalho e trazer um pouco deste know-how para cá.
Aqui em Salvador não tem uma organização que faça isso de forma tão profissional. Tem a Sorrir, que desenvolve um trabalho interessante, e as associações cuja atuação é ainda amadora e assistencialista. Um campo inexplorado e vastíssimo.
Correio da Bahia - E o conceito de responsabilidade social trabalhado com inserção de pessoas com deficiência. O status de responsabilidade social muda?
Melissa Bahia - Não vou reduzir responsabilidade social a contratar pessoas com deficiência. Para mim, responsabilidade social é um modelo de gestão. A empresa tem que adotar a responsabilidade social como uma de suas estratégias de administrar. Responsabilidade social é unir o seu negócio à área social. Não é caridade. Envolve acionistas, fornecedores, consumidores, todo o público que está diretamente ou indiretamente ligado com o negócio daquela organização.
Dentro da responsabilidade social existem vários campos de atuação. Um deles é o público interno. É através dele, diretamente, que chega-se à contratação de pessoas com deficiências - quando você promove a valorização da diversidade dentro do seu quadro de colaboradores. Pode-se agir ainda indiretamente, quando a empresa pode preferir fazer parcerias com fornecedores que tenham pessoas com deficiência também no seu quadro de funcionários. Não é só na sua empresa, mas você prioriza outras empresas que possuem um programa de inclusão.
E isso mexe muito com o público. O Instituto Ethos desenvolve uma pesquisa, que é publicada anualmente, sobre percepção do consumidor com relação à responsabilidade social. É perguntado aos consumidores qual é a ação de uma organização voltada para responsabilidade social que mais motiva a comprar determinado produto ou serviço. Sempre sai em primeiro lugar empresas que contratam pessoas com deficiência. Então isso é também um ganho de mercado.
Correio da Bahia - Além de agregar uma imagem para a empresa diferenciada, qual o benefício? Há vantagens econômicas?
Melissa Bahia - Não. A empresa não tem nenhum ganho direto, financeiro, em relação a isso. Um exemplo, se eu sou proprietário de uma empresa e quero contratar "x" pessoas com deficiência terei dedução no Imposto de Renda? Não. Agora, paga-se uma multa se não contratar. A empresa é autuada pela Delegacia Regional do Trabalho (DRT), pelo Ministério Público do Trabalho, e é o que está acontecendo. Hoje, as empresas estão começando a se mexer e querendo se mexer rápido. Então, se não cumprir a cota, a empresa é autuada. E aí, paga-se uma multa por cada pessoa não contratada. O problema é o seguinte: depois que a multa é paga, qual o destino desse dinheiro? Isso não é divulgado, a gente nunca sabe. A DRT não divulga e o cálculo é complicadíssimo. Acredito que ainda esse ano, a gente comece a ter um balanço desse tipo.
Eu sugiro que ele seja revertido em qualificação de pessoas com deficiência, no preparo das empresas com relação ao ambiente. Pagar, simplesmente por pagar, não é vantajoso para ninguém. Embora eu já tenha ouvido empresários afirmarem que pagar a multa é melhor. Porque pensa assim: paguei, encerrou o problema. Encara como problema e pagando a multa se livra.
Correio da Bahia - A legislação apenas não é suficiente?
Melissa Bahia - A lei é um incentivo, mas é restrita. A legislação traz obrigatoriedade, mas não trabalha a consciência do empresário. Tenho que contratar, mas não se exige nenhum preparo dos outros funcionários. Quando se vai contratar uma pessoa com deficiência visual para área administrativa, o computador é indispensável. O empregador não tem, e não está disposto a comprar o software leitor de tela. E aí? Como trabalha? Pronto, só faz contratar conforme a lei. A lei não especifica, não diz "crie condições para esta pessoa trabalhar". A lei é um start, mas precisa-se ir além dela.
Correio da Bahia - Como, então, formar entusiastas pela idéia de inclusão?
Melissa Bahia - Primeiro um trabalho de sensibilização com oficinas, campanhas educativas junto aos empresários. Outra coisa, que se conheça experiências positivas. Troca de experiências, conhecer as que deram certo, trocar figurinhas e ver como pode trazer para sua empresa. Existe um ponto muito sério nesse processo: após contratar uma pessoa com deficiência, verifica-se que não deu certo naquela vaga, por qualquer motivo. E o empresário então acha que nenhum mais vai dar certo. Você "estereotipiza" de uma maneira que evita novas contratações. E não é assim: pode ser que para aquela função não deu certo, ou que o temperamento daquela pessoa não condiz com a tarefa. O que acontece com todo o profissional, em todas as empresas.
Correio da Bahia - E o que é uma empresa inclusiva?
Melissa Bahia - É aquela que está preparada para receber qualquer tipo de funcionário, todo tipo de funcionário, seja no âmbito de nacionalidade, de gênero, de raça, de etnia, de deficiência, enfim qualquer tipo. Uma empresa inclusiva deve abranger seis tipos de acessibilidade: arquitetônica, programática (programas da empresa, toda a parte de planejamento), metodológica (métodos e técnicas de trabalho), instrumental (os instrumentos de trabalho), comunicacional (como a comunicação daquela empresa é desenvolvida interna e externamente) e para mim, a mais importante, e que deve estar conjugada com as outras, que é a atitudinal. É nesta última que entra mesmo a questão de desmitificação de idéias preconcebidas. Isso é uma inovação, porque até pouco tempo atrás quando se falava em acessibilidade era imediato se pensar somente na questão física, arquitetônica. Estas inovações são trazidas no Decreto nº 5.296, de 2004, que abrange todas as outras questões de acessibilidade. Por exemplo, uma empresa que em seu quadro tem uma pessoa com deficiência auditiva e vai oferecer um treinamento. É necessário ter um intérprete de libras, para que o funcionário possa acompanhar. Então, está sendo oferecida uma acessibilidade comunicacional.
Correio da Bahia - Entre as pessoas com deficiência, qual possui maior dificuldade de inserção?
Melissa Bahia - Quando as empresas me ligam querendo me perguntar sobre contratações, solicitam indicação de deficiência leve. Aí eu digo, deficiência leve não existe. Agora, a gente sente que as pessoas com deficiêcia visual e a intelectual (mental) têm maior dificuldade de inserção. Existe ainda um estigma muito grande em relação a essas duas deficiências. Mas não tem segredo. Quando se trabalha com recrutamento e seleção se busca a pessoa certa no local certo. Pronto, traga isso também para o universo de pessoas com deficiência. É difícil, como é encontrar um bom profissional.
Hoje existe um paradoxo muito grande: um número enorme de pessoas desempregadas e um número de vagas que não são preenchidas por falta de qualificação. E isso acontece no mundo de pessoas com deficiência, que não é um mundo à parte. Existe um número reduzido de pessoas com deficiência qualificadas por conta do histórico: são pessoas que não encontraram suporte ou preparo. A questão é: tem que se preparar por que para ser um atendente, não desmerecendo a profissão, é exigido um curso de inglês básico e informática. E isso não muda quando se parte para as exigências do cargo e você não pode, nem deve, abrir mão disso. O empresário deve flexibilizar porque o cargo permite, não porque é a pessoa com deficiência.
Correio da Bahia - Está existindo uma mudança? Digo, a situação do deficiente na sociedade está evoluindo?
Melissa Bahia - Hoje, estamos sob a égide do paradigma da inclusão e não mais da integração. A diferença é que no paradigma da integração, lá pela década de 80, se dizia que a pessoa com deficiência tinha que se adequar à sociedade em que ela vivia. O problema então estava na pessoa e não na sociedade. A partir dos anos 90, o paradigma da inclusão defende o contrário: que a sociedade deve se preparar para receber a pessoa com deficiência, seja em que campo for. Como por exemplo, o surgimento do novo conceito, que trato no livro, chamado de desenho universal. Ou seja, pensar a arquitetura de forma acessível a qualquer pessoa.
Correio da Bahia - Dentre o levantamento de pesquisas que você fez para o livro, que traz uma série de dados interessantes sobre a questão da inclusão da pessoa com deficiência, qual te chamou mais a atenção?
Melissa Bahia - A questão das cotas. Se a legislação fosse plenamente cumprida apenas seriam geradas 600 mil vagas de trabalho, apenas seriam empregadas 600 mil pessoas com deficiência, quando o contingente de deficientes em idade produtiva chega a 15 milhões de indivíduos. É um dado emblemático e levanta uma outra idéia de trabalho que precisa ser desenvolvido, como a inclusão de empresas de pequeno e médio porte. Por que uma empresa que tem 20 funcionários também não pode colocar uma pessoa com deficiência? Não tem nada que impeça, nem nada que obrigue. Aí, parte da questão da consciência mesmo.
Responsabilidade Social e Diversidade nas Organizações: Contratando Pessoas com Deficiência.
Editora Qualitymark:
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Autor: Melissa Santos Bahia.
Nº. de páginas: 112.
Esta obra tem o objetivo de promover a disseminação do conhecimento sobre a temática da contratação de pessoas com deficiência, bem como desmistificar conceitos pré-concebidos sobre o assunto, e estimular os profissionais da área de Gestão de Pessoas a valorizarem a diversidade, adotando práticas organizacionais inclusivas.
Para tanto são abordados aspectos significativos no processo de inclusão profissional das pessoas com deficiência, os quais vão dos elementos históricos, estatísticos e legais, passando pela caracterização de uma empresa inclusiva, por informações sobre modalidades de contratação, até chegar às normas de acessibilidade e nas tecnologias disponíveis para a preparação do ambiente de trabalho, além de exemplos de comportamento inclusivo.
Jornal Correio da Bahia - Out/2006.
Entrevistada: Melissa Bahia.
Reportagem: Mariana Rios.