As Nádegas que me Levaram à Arte.
Minha primeira experiência tátil em museus após ter adquirido cegueira em 1978, com 21 anos de idade, foi no museu da Pinacoteca de São Paulo. Em toda a minha vida fui apreciador da arte e, mesmo desde muito novo, lia sobre história da arte, visitava museus e suas obras através de livros e presencialmente, comprava reproduções de telas de grandes artistas, como Van Gogh, Renoir e outros, visitava galerias de arte e me sentia muito bem contemplando algumas obras, imaginando seus autores e os ambientes onde eram produzidas.
Certa vez, aos 20 anos, sonhei que as mulheres de todas as obras que existiam reproduzidas nas paredes de meu quarto, saíam e vinham estar comigo para conversar, tornando-se verdadeiras.
Perdi a visão e, como muitas outras coisas, perdi o acesso as telas, esculturas, das quais “O Pensador” e especialmente “O Beijo”, de Rodin, permaneceram na estrada de minhas lembranças. Também nas telas, mas nas dos cinemas, Bergman, Visconti, Zefirelli coloriram a estética e simbolismos de minhas perdas.
Quando entrei na Pinacoteca de São Paulo, em um final de ano de 2003, com minha esposa, filho e sogro, conduzido pelo artista plástico Alfonso Ballestero e rodeado por Amanda Tojal fui pego de surpresa em meio de tanta emoção.
A primeira escultura que toquei foi de Moema. Enquanto Alfonso nos fotografava, Amanda me observava e eu, muito sem graça, fiquei me perguntando se estava tocando naquilo que pensava estar tocando na frente de minha família, de Amanda, que era uma pessoa que estava conhecendo naquele momento. Ninguém ainda havia me dito que era a escultura de Moema, apenas deixaram que eu me aproximasse e tocasse na primeira coisa que me aparecesse à frente. Era tão sensual o que tocava e tão bom de tocar, que fiquei sem graça de dizer-lhes o que achava que estava tocando. Eram as nádegas de Moema, para mim simplesmente a bunda, da estátua nua e morta na praia.
O detalhe de estar morta não foi exatamente o que me chamou a atenção, mas eu estava tocando numa bunda muito sensual, como poderia ser, de algo feito de pedra! Uma bunda! Todos me observavam quando Amanda me perguntou: o que você está tocando? Alfonso tirando fotos e eu me perguntando se eu poderia pesquisar mais os detalhes da obra… com um sorriso sem graça, respondi: – É muito sensual…, Amanda, totalmente descontraída, me incentivou: “Pode tocar mais, toca em tudo”.
A essa altura notei que minha família se dispersara vendo outras obras e eu, com a mão na bunda, digo, na bunda dela, da Moema, a escultura, perdi a vergonha e lasquei: “mas isso é uma bunda!”. Amanda sorriu e disse para eu continuar tocando. Eu, todo oferecido, lancei-me à ordem, passando pelas coxas que sumiam até aparecer, um pouco além, as batatas da perna de Moema e, só depois, o calcanhar. Percebi que ela estava de lado e que partes do seu corpo não apareciam… fui mas fundo em meu toque, mas fundo, claro, não na pedra, mas na atenção à obra.
Compreendi então que, para o corpo ficar com aquela forma, só poderia estar parcialmente enterrado. Aos poucos, fui montando os pedaços do que estava tocando e percebi, na lateral, que havia dois níveis daquela estátua deitada. Uma pequena onda na pedra me revelou que aquilo deveria ser água e mais abaixo… areia! Abrindo os braços e tocando, ou tentando tocar em tudo para “ver” além de pedaços, soube então que era Moema, morta, na beira do mar, onde a água e areia tinham quase o mesmo nível e minha emoção foi me tomando, um arrepio subiu-me pela coluna, um nó se fez na garganta, senti um sei lá o quê de felicidade: a arte da escultura estava novamente possível em minha vida!
Como se não bastasse, seguimos em nossa caminhada histórica, emocionada e tátil de minha visita. Toquei em várias esculturas, devidamente contextualizadas por Amanda que, além de me contar da época e autores das esculturas, pedia-me sempre para ler, em Braille, algo sobre as esculturas sempre disponível perto das mesmas. Até que… chegamos às telas. E agora Tojal? Drummond pensou em José, pensei na Amanda: não vou tocar numa tela de Djanira, vou? Eu que sou sem nome, que zombo dos outros, e agora? Diante da tela “O Mestiço enrolando um cigarro de palha”, lembrei-me que já conhecera aquela tela e recordava-me do mestiço sentado numa banqueta, com um casebre de pau-a-pique por trás, acho que tinha uma palmeira, uma árvore por perto, não? Com certeza o mestiço enrolava um cigarro de palha.
Ainda desencavando minhas lembranças sobre aquela obra, chegou-me às mãos uma tela pequena, cheia de pontos em relevo. Eu a fui tocando, tocando, senti as mãos enrolando um cigarro de palha… caramba, era a reprodução da obra em duas dimensões! Fui tocando mais e mais… duas coisas redondas perto do peito e rosto do mestiço, dedos grandes logo abaixo delas. Meu deus! (sou ateu). Eram os joelhos que, de quem via de frente, digo, tateava de frente, eram duas bolas, onde as canelas sumiam, dando lugar aos pés, pois ele estava agachado. Para cima, a barriga sumia atrás dos joelhos, para aparecer o peito e os braços contornando tudo isso… enrolando um cigarro de palha! Mas será que era assim mesmo?
Eram tantas bolinhas juntas, nunca fui tão bom assim de tato. Será que eu estava vendo? Seria muita pretensão desse artista totalmente cego que vos escreve, como se pudesse haver alguma parcialidade nisso. Foi aí que, então, me chegou às mãos, novamente, a tela, que agora não era mais tela, mas um cenário em três dimensões, do bonequinho sentado, enrolando seu cigarro de palha, com a casa de pau-a-pique por trás, o chão de terra, a roça inteira! Realmente, emocionado, eu estava definitivamente vendo.
O mesmo aconteceu, 5 anos depois, com o cinema. Lara Pozzobon, curadora do Festival Internacional de Filmes sobre Deficiências, convidou-me para ser jurado, possivelmente o primeiro jurado cego de um festival de cinema internacional, o Assim Vivemos, no Centro Cultural Banco do Brasil. A audiodescrição, feita por Graciela Pozzobon, que é a descrição das imagens das telas de cinema e televisão, deu-me de volta outra arte. Mas a audiodescrição é outra história que ainda vou contar.
Só sei que estou vivendo o futuro que muitos cegos imaginaram. Ainda pouco, ainda mínimo, mas que é o início da oportunidade igual para todos, a verdadeira razão de ser do desenho universal, a acessibilidade pensada, trabalhada, desenvolvida por pessoas que estão além de todas as dimensões, que são, em si, a própria arte.
Obrigado a todas as Amandas, Alfonsos, Laras e Gracielas, por me mostrarem um futuro de percepções táteis, de igualdades para minha diferença que também é a de tantos. A arte está em nossas mãos!
Conheça a Pinacoteca de São Paulo, onde vivi essas renovadas emoções: Pinacoteca.