16/02/2006 - Marco Antonio de Queiroz - MAQ.

Palestra: Percepções de um Cego.

Oi Karol, oi todos, da faculdade Mckenzie, eu sou Marco Antonio, e a Karolina me falou que vocês estão estudando sobre percepção.

Eu sou carioca, sou aqui do Rio de Janeiro, Possivelmente, *rindo* vocês vão notar pelo sotaque, e realmente, nós cegos... Eu sou cego, desde os 21 anos, eu perdi a visão por causa de retinopatia diabética, mas enxerguei perfeitamente até os 21 anos, quando perdi a visão num sábado de carnaval ao acordar. Deixei meu carro na garagem, de madrugada, dormi e acordei cego, no sábado de carnaval de 78.

Eu tenho 50 anos hoje e portanto, eu já tenho... vou fazer, nesse ano, esse mês, em Outubro, 29 anos de cegueira, e 50 anos de idade.

A percepção é uma coisa muito incrível, porque eu tive de passar por várias fases de percepção da minha percepção; percepção das minhas percepções, porque eu tinha uma vida totalmente visual, e as pessoas que enxergam, de forma geral, elas... contam muito com o olhar, na percepção de tudo, né?

Então assim, eu como cego, eu tive de desenvolver várias formas de identificação da realidade, que com a visão eram imediatas. Pra mim agora são imediatas, porque eu aprendi a perceber de outra forma as coisas.

Outro dia eu tava fazendo até um curta metragem com um cineasta, cujo título do filme ia ser percepções; eu não sei se ele vai mudar, e a pergunta que ele me faz no depoimento que eu dou no curta metragem, é "O que é beleza pra você?" já que pra ele, a beleza tava na imagem, por ele ser um cineasta, uma pessoa ligada na imagem. Ele é um artista de imagem, né? E a forma de expressão dele tá na captação e edição daquelas imagens.

E eu falei assim: "Olha, a imagem pra mim, realmente não traduz o que é bonito, né? A minha idéia de beleza e de estética tá na audição, tá no tato, tá no paladar, tá no cheirar. " Eu conheço a minha esposa, e conheci mulheres na minha vida depois de cego, através do cheiro, do tato, e isso é beleza pra mim, né?

A beleza não é só sentimental; as pessoas de uma forma geral, acham que porque o cego não enxerga, que é um cara totalmente espiritualizado, né? O cego tem o sexo dos anjos, o que é *rindo* a maior mentira que eu conheço, porque todo o cego, antes de ser cego é um homem. E depois de ser homem ele é uma pessoa, que procura acessibilizar o processo educacional dele todo. E depois disso tudo, tem como característica ser cego.

A gente não gosta de uma mulher somente e principalmente porque tem um bom caráter. A gente gosta de uma mulher por um conjunto de coisas, dentre as quais, o caráter! Mas, dentre elas também, a questão física mesmo, né? A questão material da coisa, que normalmente o cego é descaracterizado, sendo uma pessoa que vê as outras pessoas de outro jeito, muito espiritual, e tal, e muito espiritual pra cego pode ser uma coxa grossa, ou um seio bonito. Tá vendo? Um seio bonito; tatilmente bonito.

Então assim, a beleza também tá no som. Uma música pode ser muito bonita, e pode levar até gente a criar imagens! Mas a minha imagem, a minha imaginação, (imaginação é uma palavra que vem de imagem em ação). Então, a imaginação de um cego, a minha por exemplo, que tô há 29 anos sem enxergar, as imagens estão cada vez mais fugindo de mim. Eu logo que fiquei cego, enxergava tudo na minha imaginação. No entanto, hoje, eu não preciso; a minha forma de enxergar, é através de som, de tato, são diálogos, são... A substância de uma pessoa que eu distingo ela das outras, não é através do visual; é através da personalidade, é através da voz, é através do corpo... Cada pessoa tem uma presença muito particular. Até o modo de andar; hoje em dia a maioria das pessoas anda de tênis e *rindo* é um problema pra gente captar o modo de andar, mas quando a pessoa anda de sapatos, dá até pra perceber quando uma pessoa tá nervosa ou tá calma, pelo andar da pessoa.

Se você conhece a pessoa. O modo de mexer na chave do carro, levando a chave do carro na mão. Ela pode estar nervosa se a chave estiver batendo com muita frequência e muita força na mão, e chacoalhando muito. Ou ela pode até estar pensando, né, numa música. Então, vai ter um rítmo, o chacoalhar da chave. Então tudo que é sentido, excluindo a visão, é uma forma de percepção da realidade, que não é diferente do que todo mundo tem.

Se eu escuto uma chave cair no chão, todo mundo escuta também, mas as pessoas depois de escutarem, vão olhar aquela chave, e vão constatar aquela realidade. Pra mim, a realidade já está constatada; é uma chave. Eu conheço o barulho de chave, mas sem olhar, eu tô tendo a mesma percepção da realidade. Eu não vou estar alienado da realidade porque não estou vendo. Eu me alieno sim, de inúmeras coisas, mas não a esse ponto de saber se uma chave caiu no chão ou não.

Por exemplo: se tiver um assalto há 100 metros da minha pessoa, e eu não escutar nada de diferente, eu vou estar alienado daquela realidade, como uma pessoa distraída vai poder estar também. Mas ela de repente pode bater o olho na arma de um ladrão apontando pra uma pessoa, e vai ter uma percepção, que é muito mais, digamos, longe. Agora: o que é longe pra mim, é o som. Eu posso sentir uma chave cair no quarto e estar na sala, e a pessoa que estiver conversando comigo, ao meu lado, vai ter escutado o mesmo barulho que eu; eu não escuto mais. Se eu for fazer uma audiometria, uma coisa científica, eu não vou escutar mais do que outras pessoas; eu posso até ter déficit auditivo, mas a questão é que a minha atenção está ligada na minha audição, porque é uma questão de sobrevivência. Eu enxergo através do meu ouvir, através do meu tato, através do meu olfato, através do meu paladar.

Então, é isso, percepção! Eu espero que vocês treinem um pouco mais a percepção de vocês, e antes de mais nada, a percepção do ser humano que existe em cada um. Entre eu e as pessoas, entre eu e a sociedade, existe uma muralha: a cegueira, e poucos sabem ultrapassá-la. Eu procuro ultrapassá-la sempre pra conversar com as pessoas, mas nem sempre as pessoas conseguem ultrapassá-la pra chegarem até a mim, por falta de percepção da minha pessoa.

Um grande abraço a todos. Aqui é Marco Antonio de Queiroz, o meu apelido é MAQ, e eu estou sempre por aí! Tô na internet. Ah, e visitem a minha página que vocês vão saber mais de mim; de mim e sobre outras inúmeras deficiências; Está cheio de percepção por lá *risos*, percepções novas pra vocês: www.bengalalegal.com; não tem o .br no final, é só www.bengalalegal.com .

Um abração a todos! Tchau! Tchau Karol!

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Transcrito por André Baldo em 01/11/2007.