Percepção Tátil do Corpo em Meio Líquido - Piscina.

20/07/2006 - Fabiana Romano Lindinho de Siqueira 1,
Antonio João Menescal Conde 2 e
UOL Esporte 3.

1. Natação - o Corpo em Movimento.

A estimulação precoce e as atividades no meio líquido são altamente indicadas aos alunos cegos e de baixa visão.

A criança vidente descobre seu corpo vendo-o; já a criança cega, que tem necessidade absoluta de conhecer seu corpo por inteiro, carece de outras estratégias. Nas atividades aquáticas ela tem a sensação tátil de seu corpo ao movimentar-se na água, percebendo claramente todo o movimento realizado. Além de aprender a nadar, irá favorecer o aumento de sua capacidade motora, cardio-respiratória e postural.

1 Fabiana Romano Lindinho de Siqueira - Professora de natação e hidroginástica do LMC.

Crianças na aula de natação do Lar das Moças Cegas

2. Educação Física e Alegria.

Corria uma tarde ainda quente do outono carioca. Estávamos no ano de 1986 ou 1987, confesso que não me recordo com exatidão. Naquela época, nós, professores de Educação Física do Instituto Benjamin Constant, éramos procurados por um grande número de acadêmicos, visto que a Educação Física Adaptada começava a ser entendida como um importante componente curricular nos cursos superiores de graduação.

Eu estava por iniciar a minha segunda aula daquela tarde, quando fui procurado por dois acadêmicos que deveriam cumprir um estágio de observação conosco. Uma turma de crianças das classes de alfabetização, cegas e de visão subnormal, já aguardava por mim para o início da aula, esperando com ansiedade o banho na ducha coletiva que temos no acesso à nossa piscina.

A algazarra era grande e as carinhas demonstravam que elas estavam muito perto do prazer. Para essas crianças, que já haviam trocado por satisfação e alegria, ainda na pré-escola, o medo e a insegurança em relação à piscina e às aulas de natação, aquele era um momento onde elas poderiam demonstrar mais uma vez que venceram seus próprios obstáculos e as barreiras existentes para um contato bastante agradável com o meio líquido.

Era facilmente perceptível, nas fisionomias dos nossos visitantes de primeira vez, o impacto e a surpresa ao se depararem com nossos alunos. Quem sabe esperassem uma casa triste, como talvez julgassem ser sempre uma casa de cegos, ou talvez viessem preparados para um choro contido ao verem crianças cegas sendo arrastadas por seus assistentes videntes, desorientadas em um ambiente tão grande, ou ainda sentadas num canto qualquer com a fisionomia demonstrando a pressuposta inviabilidade de alegria num mundo sem a visão.

Depois da apresentação vieram as primeiras perguntas, sempre padronizadas e certamente elaboradas por um professor de didática, às quais eu já havia respondido por mais de uma dezena de vezes, quando trazidas por outros acadêmicos da mesma Escola. Durante o interrogatório pude observar que seus olhos não conseguiam desviar-se do que, para eles, era absolutamente inusitado e imprevisto: as crianças do Instituto Benjamin Constant demonstravam uma descontração absoluta e uma alegria surpreendente.

O que era aquilo? Como era possível? Essas foram perguntas que, não tenho dúvidas, passaram por suas cabeças. Foi nesse ambiente que veio a pergunta chave: Professor, qual é o tema da aula de hoje? Hoje a aula é de alegria, disse eu. Nesse ponto começa a nossa estória.

Naquela ocasião, eu já tinha uma experiência de seis ou sete anos com aulas de Educação Física para crianças cegas e de visão subnormal. Qualquer melindre em relação à deficiência, que eu, por acaso, tenha tido no início da minha atuação no IBC, já se dissipara totalmente. Buscava compreender meus alunos como crianças e como crianças com deficiência, exatamente nessa ordem, não deixando de considerar tudo aquilo que a infância e a cegueira na verdade trazem no nível das necessidades, interesses e expectativas.

Desde o início percebi o caráter absolutamente essencial das atividades lúdicas para meus alunos. Oferecer oportunidades para que o prazer de brincar pudesse estar sempre junto às atividades formativas, buscando, por ambos, o desenvolvimento da criança, e não um treinamento de instrução e uma performance atlética, era a estratégia básica de minha atuação.

Quando minha resposta trouxe uma surpresa, quem sabe maior do que aquela que tiveram os estagiários ao se depararem com a realidade de nossas crianças, eu pude entender. Tendo em vista que, naquela época, a Educação Física era percebida por alguns profissionais que nela atuavam como tendo uma potencialidade muito menor do que aquela que de fato ela tem, é muito provável que aqueles jovens não tenham percebido o papel e a importância que tem uma coisa tão simples quanto a alegria em uma aula de Educação Física. Depois da minha resposta as atenções passaram a ser concentradas em mim com um olhar direto de dúvida e avidez por maiores esclarecimentos. Preferi não dá-los, mas sim deixar que eles próprios pudessem observar o que representava um tema como esse, para eles, sem dúvida, absolutamente inédito.

O que seria uma aula de alegria? A alegria pode ser ensinada? Ora, se não há o ensino, não há aula. Quais os instrumentos de avaliação poderiam ser utilizados para mensurar uma questão tão abstrata? Como seria organizado o conteúdo? E a aula, como seria dividida? Os objetivos instrucionais, quais seriam? Todas essas perguntas passaram pelas mentes dos dois estagiários, então absolutamente confusos. Pelo teor dos questionários que nos eram apresentados, podia se perceber que a Escola adotava uma linha comportamentalista e diretiva na proposta didática utilizada. Como eu poderia querer que acadêmicos habituados a temas fechados, objetivos comportamentais, estilo e estratégias nessa linha pudessem perceber a alegria como tema de uma aula de Educação Física? Talvez tenham pensado em um possível sorriso de canto de boca como padrão mínimo a ser apresentado. Quem sabe, no processo de avaliação, um sorriso aberto valeria dois pontos ou mais? Com certeza minha intenção não era essa, embora um sorriso seja sempre muito importante.

E a tal aula de alegria?

Todos nós, tenhamos sido crianças há muitos anos ou não, guardamos conosco as lembranças de nossas brincadeiras infantis. Por esse processo todos nós passamos. Dele tiramos muito daquilo que hoje somos. O brincar é absolutamente inerente, necessário e essencial ao desenvolvimento humano. A criança cega não é diferente, ela gosta e tem necessidade de brincar, principalmente brincadeiras que trazem em si a necessidade da interação ambiental e interpessoal. Contudo, em algumas situações, geralmente trazidas pelos cerceamentos da superproteção e de outras reações familiares ao nascimento de uma criança com deficiência, ela fica privada, ou decrescida, de seus melhores momentos.

Outra questão a ser considerada, é o fato trazido pelo estigma que a sociedade tem em relação às pessoas com deficiência de uma maneira geral. Deficiência e prazer definitivamente não combinam na restrita visão preconceituosa e generalista de uma sociedade mal informada sobre a realidade das diferenças humanas. A brincadeira é ludicidade, é prazer, é alegria, e isso aqueles jovens acadêmicos não esperavam encontrar numa instituição educacional para pessoas com deficiência.

Além de poder ser a natação também uma brincadeira, além do prazer que ela geralmente traz, as atividades no meio líquido desempenham uma função de grande potencialidade com relação ao desenvolvimento da criança cega. Elas atuam, também, como elementos de construção de conceitos corporais e sinestésicos. Através da percepção tátil que o meio líquido lhe oferece ao envolver seu corpo, qualquer movimento é percebido, e a internalização da imagem corporal e da potencialidade biomecânica se fazem na medida que existe uma reação a toda ação motora. Isso pode, em parte, substituir a função do espelho e do modelo visualmente percebido e utilizado pela criança de visão normal, como embasamento de seu desenvolvimento motor, postura e percepção corporais.

A aula observada pelos estagiários adotou como estratégia a predominância absoluta das atividades de animação sobre as de instrução; da aquisição, transferência e utilização de conceitos sobre a técnica; dos estímulos, problemas e reforços apresentados de forma individualizada, sobre aqueles dirigidos a todo o grupo; da utilização das pistas ambientais e dos pontos de referência sobre uma voz de comando constante; do movimento livremente expresso sobre aquele construído a partir de um comando externo; do movimento sobre sua excelência; da individualidade sobre o todo; dos aspectos utilitários, recreativos e formativos da natação sobre a performance; do desenvolvimento da auto-confiança, da auto-iniciativa, da capacidade de tomar decisões e do prazer de poder fazer sobre a dependência absoluta do aluno ao professor; e, acima de tudo, o privilégio da participação plena, da ludicidade, do prazer e da alegria sobre os conteúdos formais.

Certamente não buscávamos atletas (isso, se for o caso, virá depois). Ali, as vitórias que esperávamos de nossos alunos não eram as conseguidas em competições esportivas, mas sim aquelas a serem alcançadas no dia a dia, ao superarem as barreiras que lhes são impostas no caminhar de sua efetiva e igualitária participação na sociedade, sendo, ao meu ver, a potencialização, o dar condições para o embate social, a principal função da Escola - especializada ou não.

Contudo a "aula de alegria" não era aquela. Aos meus alunos eu não tinha necessidade de ensiná-la, eles a haviam descoberto fazia já um bom tempo. Os sujeitos da "aula de alegria", aqueles a quem o tema foi de fato dirigido, eram exatamente os dois jovens acadêmicos. Eles é que tinham a necessidade de uma "aula de alegria", dada, não por mim, mas sim por crianças cegas e de visão subnormal de oito, nove e dez anos de idade.

* Antonio João Menescal Conde é professor de Educação Física do Instituto Benjamin Constant (IBC).

3. Brasil conquista dois ouros na piscina e supera marca de Sydney.

O bom público presente na piscina do Centro Aquático Olímpico de Atenas viu na tarde deste domingo o Brasil superar a marca de medalhas paraolímpicas conquistadas em Sydney. Fabiana Sugimori e Clodoaldo Silva, que já haviam feito os melhores tempos de suas eliminatórias pela manhã, mantiveram o ritmo e subiram ao topo do pódio. Assim, o Brasil chega a 23 medalhas, uma a mais do que na Austrália.

A primeira a ganhar medalha no dia foi Fabiana Sugimori, nos 50 m livre da classe S11* (para cegos). A campineira, de 23 anos, entrou na piscina na condição de favorita, uma vez que pela manhã quebrou o recorde mundial da prova com o tempo de 32s32. Além disso, já tinha conquistado o título em Sydney. Fabiana largou na raia quatro, ao lado da ex-recordista mundial, a alemã Natalie Ball. As duas vestiam maiôs idênticos: preto com linhas brancas. Nos primeiros metros, a disputa foi acirrada. Mas Fabiana abriu uma pequena vantagem e venceu com o tempo de 32s35. Ball foi a segunda, com 33s22, e a holandesa Marion Nijhof a terceira, com 33s58.

"Meu sonho era ganhar uma medalha de ouro e bater o recorde mundial. Assim, eu seria a atleta mais feliz", disse Fabiana, que ficou cega quando nasceu, por causa do excesso de oxigênio na incubadora. A nadadora brasileira comemorou bastante a conquista. E disse que o ouro em Atenas teve um sabor diferente do de Sydney. Afinal, na Grécia ela foi assistida pela família: "Hoje a medalha teve um gostinho especial porque a minha família veio aqui me ver", disse Fabiana, que recebeu o apoio da mãe Hilda, dos irmãos Marcelo e Flávia, e da técnica Giovana. Encantada pela conquista, Fabiana sorriu o tempo inteiro em que o hino brasileiro foi tocado em Atenas. Após receber a medalha, Fabiana ainda foi homenageada com uma versão de "Aquarela do Brasil".

Se para Fabiana ouvir o hino nacional em Atenas foi novidade, para Clodoaldo Silva já tinha virado rotina. Neste domingo, ele ganhou sua quarta medalha dourada, desta vez nos 150 m medley da classe SM4. A coleção do "Michael Phelps brasileiro" ainda tem uma de prata e três recordes mundiais. Apesar de ser um resultado comum, a vitória foi bastante comemorada pelo nadador potiguar, que teve paralisia cerebral no nascimento. O próprio atleta explica o motivo: ele não se considerava o favorito na disputa: "Se eu disser que estava esperando a medalha de ouro eu vou estar mentindo. Este resultado foi uma surpresa para mim", disse Clodoaldo.

No final da prova, Clodoaldo recebeu um caloroso abraço de Fabiana. "Ela veio me dar os parabéns, mas quem está de parabéns é ela, pelo que fez hoje aqui", disse o campeão.


3 - UOL Esporte. Paraolimpíadas 2004.
Reportagem de Lello Lopes em 26/09/2004.
Enviado especial do UOL - Atenas (Grécia).

* Na natação paraolímpica, existem dez classes para atletas com problemas físico-motores, sendo que a S1 engloba os competidores com maior grau de deficiência e a S10 os de menor grau. Existem ainda três categorias para atletas com deficiência visual.