Sopro no Corpo, Vive-se de Sonhos - Prefácio.
Conheci Marco Antonio de Queiroz em 1992, por intermédio da primeira edição de seu livro Sopro no Corpo. Impressionaram-me, desde a primeira leitura, a sensibilidade, a clareza e a riqueza de sua narrativa em relação à sua vida e, sobretudo, à sua experiência de tornar-se e ser cego, em conseqüência da diabetes, desde seus 21 anos.
Em seu livro, é possível perceber que, sua trajetória em relação à deficiência visual é de acolhimento e luta pela inclusão social, mesmo considerando as contradições humanas e os limites sociais impostos às pessoas com deficiência. Tendo de enfrentar cotidianamente o preconceito, Marco Antonio buscou e conseguiu viver sua vida em uma sociedade que impõe a homogeneização a todos os indivíduos, revelando a importância de resistir a esse processo e, sobretudo, nos ensinando uma lição fundamental: a diferença, advinda da cegueira, não deve ser transformada em desigualdade. Antes, deve ser considerada a essência de sua humanidade.
Desde então, adoto seu livro em minhas atividades, na graduação e pós-graduação, da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. Em 1999, cursando uma disciplina no Mestrado da Universidade de São Paulo, tive a oportunidade de, mais uma vez, debruçarme sobre seu livro, agora como objeto de estudo no trabalho final. Posteriormente, Marco Antonio participou como sujeito de minha tese de doutorado quando trabalhava como programador de computadores no SERPRO/Regional do Rio de Janeiro. Foram muitas horas de entrevistas, de conversas emocionadas sobre suas experiências nos estudos, na família, com os amigos, com os afetos, com a deficiência visual e como escritor. Continuamos nos encontrando em minhas salas de aula na Universidade Federal Fluminense.
Passados vinte anos, em seu livro, agora Sopro no Corpo: Vive-se de Sonhos, Marco Antonio está ainda com mais força em sua capacidade de narrar o que lhe diz respeito - a experiência de ser um homem cego, transplantado duplamente, com 48 anos, que não abriu mão da vida ao lado de sua esposa Sônia, de seu filho Tadzo e de si mesmo.
É importante ressaltar que sua narrativa se apresenta sem heroísmo ou amargura, mas com simplicidade, naturalidade e beleza. Como sempre, com a força e lucidez do homem que sabe o significado de sua experiência com a cegueira e a diabetes, nos conta sua história de vida, sabedor, como Gabriel García Márquez, de que: "A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la".
Marco Antonio agora faz alusões a episódios significativos vividos por ele nos últimos vinte anos, narrando com sua desenvolvida sensibilidade o viver em sua essência e como constituinte de sua subjetividade, o nascimento de seu filho Tadzo e seus transplantes. Enfrentando e superando as limitações impostas pela insuficiência renal e pelo preconceito, Marco Antonio rejeitou os estereótipos e fugiu ao estigma, se permitindo fazer o que a cabeça e o coração lhe ditaram.
A integridade e intensidade de suas experiências com a cegueira e com os transplantes de rim e pâncreas, de sua concepção de vida, de sua capacidade de sonhar e realizar sonhos são dignas de serem partilhadas. Sua vida sempre acesa não negou a deficiência visual. Antes a viveu e vive como experiência. Isso envolveu sua aceitação.
A aceitação da deficiência se desenvolveu gradativamente para Marco Antonio ao longo de anos, preenchidos com experiências exitosas no trabalho, nos estudos e na vida familiar. É necessário destacar que a aceitação das implicações e limitações impostas pela diabetes e pela deficiência visual não ocorreu como um relâmpago, acompanhado de um dar-se sempre bem com a vida. Antes, seu processo de luta o ensinou, pouco a pouco, que a deficiência não precisa ser pensada como um fardo insuportável. Ela pode ser considerada como uma complicação - e quem não tem isso na vida?
À proporção que a luta pelo trabalho, pelo conhecimento, pela saúde, pela família, pelo amor, pelo sonho e pela felicidade dá prova de algum sucesso, Marco Antonio vai acolhendo a deficiência visual como uma experiência, e como tal pode e deve ser considerada constituinte de sua subjetividade. A vida com acolhimento e realizações passa a ser a questão central de sua luta, bradando como Thiago de Mello: "Pois aqui está a minha vida, pronta para ser usada. Vida que não se guarda nem se esquiva, assustada. Vida sempre a serviço da vida, para servir ao que vale a pena (...)".
O acolhimento da deficiência contribuiu não apenas para o desenvolvimento humano de Marco Antonio e para o enfrentamento do preconceito e da discriminação presentes em seu cotidiano, como também para a conscientização das pessoas em seu entorno. Ao refletir sobre a condição de ser deficiente visual, Marco Antonio revela em seu livro que sua capacidade de discernimento, escolha e decisão nunca estiveram fora de foco, podendo exercer seus papéis e funções sociais, contrapondo-se à percepção da sociedade preconceituosa que tenta reduzir a pessoa deficiente à sua deficiência.
Finalizando, quero recomendar enfaticamente a leitura deste livro como estudo reflexivo permanente, destacando a determinação, a perseverança, o desejo e os sonhos que permitiram a Marco Antonio afirmar que "são essas descobertas que me fazem amar a vida e não deixá-la, aos pedaços, pelo caminho", superando as barreiras colocadas em sua vida e sabedor de que "os sonhos vão se realizando e até nos esquecemos de que foram sonhos. Criamos outros para termos mais sonhos. Não tem como ser diferente, vive-se disso!" E, sobretudo, que é sempre necessário falar daquilo que não deve calar dentro de si mesmo e, como Pablo Neruda, falar o mais alto possível: "Confesso que vivi".
Rio de Janeiro, outono de 2005.
Valdelúcia Alves da Costa:
professora adjunta da Universidade Federal Fluminense, docente do Programa de Pós-Graduação em Educação, coordenadora do Curso de Especialização em Educação Especial e vice-coordenadora do Curso de Pedagogia.