A força de uma militante.
História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil
Rosangela Berman Bieler nasceu em 1957. É natural da cidade do Rio de Janeiro. Aos 19 anos de idade, no primeiro ano da faculdade, sofreu um acidente de carro que a deixou tetraplégica. Jornalista, é mestre em Inclusão Social das Pessoas com Deficiência pela Universidade de Salamanca, Espanha.
Durante a reabilitação na Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR), em 1977, começou a militar como relações públicas do Clube dos Amigos dos Deficientes Físicos (CLAM/ABBR). Nesse mesmo ano, compôs o grupo que fundou a Associação dos Deficientes Físicos do Estado do Rio de Janeiro (ADEFERJ), na qual também atuou como relações públicas. Pela ADEFERJ participou dos Encontros de Brasília, em 1980, e do Recife, em 1981. Em 1983, foi uma das fundadoras e primeira coordenadora nacional da Organização Nacional de Deficientes Físicos (ONEDEF) e entre 1983 e 1988 foi editora do Etapa, órgão informativo da ONEDEF. Em 1988, depois de uma viagem de intercâmbio aos Estados Unidos e de conhecer o Centro de Vida Independente, fundou com Lilia Pinto Martins e Sheila Salgado, no Rio de Janeiro, o primeiro CVI do Brasil. Em 1992 e 1995, presidiu os congressos internacionais DEF-Rio.
No final de 1995, mudou-se para os Estados Unidos. Em 1997, organizou o Forum Internacional de Mulheres com Deficiência e, em 1999, a Conferência Mundial de Vida Independente, em Washington. No mesmo ano, criou o Instituto Interamericano sobre Deficiência e Desenvolvimento Inclusivo (IIDI). Nos últimos 15 anos vem atuando como consultora do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, dentre outras Agências, em assuntos relacionados às pessoas com deficiência e ao desenvolvimento inclusivo.
Entrevistador: Apresente-se para nós.
Rosangela Berman Bieler: Meu nome é Rosangela Berman Bieler, nasci no Rio de Janeiro, em 31 de outubro de 1957, tenho 52 anos.
Entrevistador: Quando você sofreu o acidente, o período de recuperação foi demorado?
Rosangela Berman Bieler: O acidente foi em outubro e fiquei imobilizada até janeiro. Eu, que tinha acabado de tirar o gesso, quebrei o pescoço de novo em uma sacudida do carro. Tive de fazer uma nova cirurgia e fiquei mais três meses imobilizada. Nessa época, eu fui para a ABBR fazer minha reabilitação. Aí, abriu outro mundo na minha vida.
Foi uma época, historicamente falando, muito rica, porque muita coisa estava acontecendo. O próprio fato de a nossa geração ser a primeira que saiu do centro de reabilitação para o “bar” foi nossa reabilitação social, um aprendendo com o outro e, juntos, abrindo caminhos que ainda não existiam para pessoas com deficiência.
O início da militância.
Entrevistador: Quando você entrou para o movimento?
Rosangela Berman Bieler: Entrei para o Movimento de Pessoas com Deficiências em 1978, pelas mãos da Lilia Pinto, no meio da reabilitação e do curso de Comunicação, no qual eu me formei em 1982. Na Comunicação eu já participava do movimento estudantil. Mas, na Belas-Artes, eu fui diretora do Diretório Acadêmico e participava dos congressos da UNE. Naquela época tudo estava acontecendo em razão da abertura política do País e das Diretas Já. Ao mesmo tempo em que eu atuava mais no movimento de deficiência, eu era estudante universitária e tinha militância no setor acadêmico também.
Entrevistador: Até o momento do acidente, você tinha algum contato com o Movimento das Pessoas com Deficiência?
Rosangela Berman Bieler: Nada, nada, nada. Aqui no Rio, como em outros lugares, havia clubes de cadeirantes cuja prática era colocar 50 deficientes nos carros e levá-los para, por exemplo, Copacabana em horário de grande movimento. Ia todo mundo para a rua; era um batalhão vendendo bala. E eu passava batido. É interessante perceber como a gente é treinada para não ver o diferente, o que incomoda a sociedade. Depois é que ficou claro para mim por que isso acontece: você está passando de cadeira de rodas em algum lugar, e o menininho que fica alucinado com a cadeira vem pra perto pra brincar, mas a mãe dá “cascudo” e tira ele de perto de você: “não pergunta, não toca, não nada!” Então, você simplesmente não existe no referencial social. Uma coisa típica da área da deficiência é a invisibilidade.
Agora muito menos, mas a deficiência era um grande tabu, um estigma muito pesado. Isso também foi uma coisa interessantíssima na minha juventude, porque a gente tinha esse desafio de quebrar o tabu. Naquela época estavam saindo uns filmes no cinema, como o Amargo regresso, com o Jon Voight, maravilhoso, saindo da guerra do Vietnã paraplégico e transando com Jane Fonda. Todo mundo começou a falar na sexualidade. Logo Marcelo Rubens Paiva lançou Feliz ano velho. Marcelo vinha para o Rio e a gente fazia debate sobre sexualidade e deficiência no Museu de Arte Moderna (MAM). Lotava, juntavam 500 pessoas. Tinha um glamour muito grande em torno disso tudo. Éramos todos jovens, bonitos, bronzeados e cadeirantes.
Entrevistador: Vocês foram os primeiros a quebrar os paradigmas.
Rosangela Berman Bieler: Sim. E era divertida essa construção. Foi um momento muito rico, muito especial. Em nível pessoal, nível político, nível cultural. A geração atual tem muito menos oportunidade de se expor a uma situação como aquela, porque naquela época o mundo estava vivendo um movimento internacional de emancipação social e política, de negros, de mulheres, de indígenas, tudo. E a deficiência, que chegou sempre no final da fila, finalmente começou a ter lugar nesse cenário.
A quebra de paradigma - do modelo médico para o social.
Entrevistador: Nessa quebra de paradigma, qual você considera o gargalo mais sério?
Rosangela Berman Bieler: Falando de 20, 30 anos de história, o que perante a História não é nada, mas é uma volta de 180° no movimento, foi a quebra do modelo médico e a entrada do modelo social. O modelo médico, que não tem a ver somente com medicina, é aquele modelo onde tudo que tem a ver com a deficiência está no corpo da pessoa, é culpa da pessoa ou, no máximo, da mãe da pessoa. Segundo o modelo médico, você tem que “consertar” aquela pessoa com deficiência para ela poder viver na sociedade. Já no modelo social, que cada vez fica mais forte, inclusive com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a deficiência é vista como resultado da interação de uma limitação funcional com um ambiente que exclui. Um ambiente que deveria ser construído para todos os seres humanos viverem em sociedade foi, na verdade, construído para um modelo de ser humano que está muito longe de abarcar toda a diversidade humana.
Há uma charge do Ricardo Ferraz, um desenhista antigo do movimento, que uso para falar da diferença entre o modelo médico e o social [a imagem em questão é um homem na cadeira de rodas parado em frente a uma escada. Em cima da escada outra pessoa diz “Você quer que eu vote por você?”]. Uma pessoa com o olhar do modelo médico vai olhar a cena e pensar: “Coitado, ele não pode votar porque é deficiente”. Mas uma pessoa com o olhar do modelo social diria: “Que absurdo, ele não pode votar porque tem uma escada”. Essa é uma mudança sutil de paradigma.
A mudança do conceito de integração para o conceito de inclusão foi outra quebra forte de paradigma na área da deficiência. Em 1981, o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, e expressão “integração social” era o máximo. A integração pressupõe que você tenha um cenário social e que seres “extrassociedade” serão trazidos e integrados a uma sociedade que está pronta. A ideia é trazer aquele menino do modelo médico que está em uma cadeira de roda para o convívio social, para uma sociedade cheia de escadas e de outras formas de exclusão pelo ambiente, e tutelá-lo naquele contexto sem se preocupar em influir ou em alterar aquele caldo social. Na perspectiva da inclusão, ao contrário, em vez de você integrar alguma coisa de fora sem alterar aquele meio, o que vem de fora entra e altera completamente a química social para gerar um espaço inclusivo para todo mundo.
Entrevistador: Para todos, não somente para deficientes.
Rosangela Berman Bieler: Certo, inclusão é todos.
Entrevistador: Sua gravidez também foi uma quebra de paradigma?
Rosangela Berman Bieler: Fiquei grávida da Mel em 1985. Minha gravidez não foi a primeira de uma cadeirante. Mas até hoje causa surpresa. Naquela época, estávamos envolvidas com saúde sexual e reprodutiva, na perspectiva da sexualidade. Havia várias pesquisas sobre mulher com deficiência, nós conversávamos entre nós, nos comunicávamos, compartilhávamos nossas histórias. Começamos uma relação com o movimento de mulheres, do qual fazia parte Ethel Rosenfeld, Lilia Pinto Martins, Heloísa Chagas e Cândida Carvalheira, dentre outras. A questão de gênero também entrou na nossa militância.
Entrevistador: Em 1977, você começou a militar como relações públicas do CLAM/ABBR?
Rosangela Berman Bieler: Isso mesmo. Fui relações públicas no começo do CLAM, Clube dos Amigos dos Deficientes Físicos, que ficava dentro da ABBR. Tentávamos facilitar a relação entre os pacientes e a diretoria do centro de reabilitação. Éramos um clube de pacientes, a voz do povo. Fazíamos passeata contra comida, que era um horror, denunciávamos a falta de privacidade nas enfermarias. Logo depois fundamos a Associação de Deficientes Físicos do Rio de Janeiro (ADEFERJ), em 1978 ou 1979. Lilia Pinto foi o motor fundamental desse processo.
Estamos começando a fazer o movimento, a configurá-lo. Tudo começou muito por causa do Ano Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD), da ONU. Em 1979, a área estava começando a se articular, começaram a surgir as coordenadorias. Existia o Conselho Nacional de Apoio às Pessoas Deficientes, que funcionava dentro do Instituto Benjamin Constant, no Rio de Janeiro, e a CORDE só foi fundada em 1986. Mas naquela época estávamos começando a nos preparar para ter voz, o que logo em seguida gerou toda a preparação nacional para receber o Ano Internacional e estruturar o País na área de deficiência.
Lilia Pinto Martins é superimportante para o movimento. Ela ajudou a fundar o CLAM, e depois fundou a ADEFERJ, uma das primeiras associações de deficientes do Brasil. Em certo ponto, o CLAM foi fechado pela diretoria da ABBR, e a ADEFERJ estava começando lá e foi expulsa. Lilia me convidou para ser relações públicas da ADEFERJ.
Pela ADEFERJ eu fui como relações públicas para um grande Encontro nacional em Brasília, em 1980 – o primeiro. Em 1981 houve outro Encontro histórico, em Recife, que foi o do AIPD. Naquela época, eu tinha assento no Conselho da CORDE, que na época não era CORDE ainda, mas Secretaria de Apoio à Pessoa com Deficiência, e funcionava no Instituto Benjamin Constant.
A organização inicial do movimento e o Ano Internacional das Pessoas Deficientes.
No Brasil, houve uma mobilização enorme da área da deficiência em preparação para o AIPD. Por vir de um “decreto” da ONU, todos os países-membros assinaram e concordaram com a realização do Ano Internacional. Dessa forma, os países se comprometeram a realizar eventos, disponibilizar recursos, inclusive financeiro, realizar pesquisa, etc.
O AIPD foi uma força motriz muito grande no movimento em todo o mundo. No Encontro de Brasília, em 1980, por exemplo, foi quando se definiram as grandes áreas de deficiência – motora, visual, auditiva e hanseníase –, que estavam bem organizadas naquela época. Ainda não havia a da paralisia cerebral e outras, que foram aparecendo depois. Havia a área a intelectual, na época denominada mental. E se criou um novo paradigma fortíssimo: o de entidades de e entidades para.
Entrevistador: Qual é a diferença?
Rosangela Berman Bieler: As entidades para eram as APAEs e outras instituições em que alguém - um técnico, um pai, qualquer “outro” - tutelava, representava a pessoa com deficiência. Não havia nossa própria voz. Em 1980 foram criadas as primeiras entidades de pessoas com deficiência. Eram, como a nossa ADEFERJ, entidades geridas pelos próprios deficientes. O controle estava nas mãos da pessoa com deficiência, o que foi uma coisa “revolucionarrérrima” em todo o mundo.
Aconteceu tudo ao mesmo tempo. As pessoas começaram a querer se organizar. A ONU estava dando visibilidade e legitimidade para que a pessoa com deficiência estivesse no centro, o que nos deu mais empoderamento.
O Encontro de Brasília de 1980 foi organizado por Benício Tavares e José Roberto Furquim, que naquela época trabalhavam no Hospital Sarah Kubitscheck. O hospital tinha uma gestão interessante e colocou os recursos na mão desses dois cadeirantes de Brasília, que fizeram uma grande mobilização nacional com o Encontro Nacional, em Brasília. Ali começaram a aparecer as organizações de.
O crescimento das entidades de pessoas com deficiência e o jornal Etapa.
Entre 1981 e 1982, ainda se conseguia contar quantas organizações de pessoas com deficiência física existiam. Nesse momento, foi um big bang, explodiu o universo e cada área de deficiência começou a criar as próprias organizações.
Naquela época, se a deficiência motora tinha seis associações pelo Brasil afora era muito. O mesmo se dava com os deficientes visuais e auditivos. Todos se reuniram em Brasília, em 1980. Em 1981, talvez já tivesse o dobro de organizações de cada área.
Naquele momento – creio que 1982 ou 1983 – começamos a editar o Etapa, que era o jornal da Organização Nacional de Deficientes Físicos (ONEDEF). Foram vários anos do Etapa, que teve um papel preponderante de mobilização em um país grande como o nosso. No início, eram mil exemplares, depois 5 mil e, no final, 40 mil. Ia para todo o Brasil e para o exterior.
Logo depois do Ano Internacional, em um ano se fundaram cerca de cem novas organizações, em todo o País. Recebíamos pedidos do modelo de Estatuto do Oiapoque ao Chuí. Era uma coisa emocionante, uma profusão de movimentos, de pessoas se envolvendo, uma coisa muito forte.
Eu fui a primeira coordenadora nacional da ONEDEF e, logo de cara, saímos com o jornal. Queríamos uma coalizão com todas as áreas – no Rio a gente trabalhava com todas as áreas, mas no Brasil afora, não. O movimento dos deficientes visuais, por exemplo, sempre foi muito sectário. Pessoas cegas que atuavam conosco eram chamadas de traidoras porque trabalhavam com as outras áreas da deficiência. Maurício Zeni e outros do Movimento pela Emancipação Social dos Cegos, depois de um tempo, foram completamente excluídos ou se excluíram do movimento, porque tinha de ser só aquele gueto.
Então, naquela época, o jornal começou mais para a deficiência física. Mas ele era o instrumento do movimento. Ele já começava a cobrir outros temas e se mantinha sustentável somente com anúncio, o que era muito para um jornal para deficiente, que circulou entre 1982 e 1988 no Brasil.
A experiência da Coalizão Pró-Federação Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes e a segmentação do movimento.
Entrevistador: Foi nesse momento que se pensou a Coalizão Pró-Federação Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes?
Rosangela Berman Bieler: A Coalizão foi criada em 1982, com a perspectiva de que teríamos entre 1983 e 1984 para criar as federações nacionais. Logo que a Coalizão foi criada, foram eleitas cinco pessoas, uma representante de cada região do País, para a coordenação, só que a maioria delas tinha deficiência motora. Na primeira oportunidade de encontro aconteceu o inevitável racha. Adotou-se, então, o conceito de paridade de representação do movimento. A Coalizão, que não tinha nem começado a nascer, foi reformulada e criou-se uma estrutura com dois representantes por área de deficiência, a serem eleitos pelo movimento. Parece-me que essa estrutura perdurou por dois anos. Fui coordenadora nacional dessa Coalizão, também.
Mas os deficientes visuais começaram a não participar, a Federação dos Surdos ficou meio desarticulada e a Coalizão não conseguiu engrenar e ficou meio pendente durante dois anos. A ideia da Coalizão era criar uma Confederação Brasileira, o que nunca aconteceu de fato, composta pelas federações de cada uma das áreas. Assim, as organizações de pessoas com deficiência existentes criaram suas federações entre 1983 e 1984: a Organização Nacional de Entidades de Deficientes Físicos (ONEDEF); a FEBEC, dos cegos; a FENEIS, dos surdos; e o Morhan, dos hansenianos. Nesse momento em que o movimento de estava crescendo, isolamos as entidades para, o que foi outra mudança de paradigma. Foi uma rasteira muito forte porque as organizações para, até então, sempre haviam controlado a área. E naquele momento eles passaram a ser questionados, acusados e excluídos.
Não dava para se associar quando a batalha para manter a tutela ainda era muito grande. Então, as entidades eram todas de. Mas aí começamos a nos confrontar entre as entidades de, porque o ser humano não é inclusivo. Começaram a surgir os conflitos internos no movimento.
A dinâmica do movimento na década de 1980.
Entrevistador: Mas por algum momento estiveram unidos. Qual era o motivo?
Rosangela Berman Bieler: O Ano Internacional foi o primeiro momento no qual todo mundo se juntou. Naqueles três anos, de 1980 até 1984, houve um grande esforço de trabalhar junto. Foi o florescimento do movimento no Brasil. As federações foram criadas e, se antes havia 20 entidades de todas as áreas no país, em poucos anos já eram 800.
Naquele período, vários fatores marcaram não somente a área da deficiência, mas os movimentos sociais em geral. Nada é isolado do contexto social e político. Naquela época, o Leste Europeu estava despontando com a queda do Muro de Berlim e toda cooperação internacional, que de alguma forma atuava no Brasil e apoiava as grandes ONGs que despontavam com muita força e profissionalismo, foi redirecionada para o leste e o centro da Europa. Quem tinha recursos para trabalhar e manter suas equipes perdeu esses recursos. O movimento entrou em um marasmo muito grande depois de 1988. Passou o tsunami e estávamos esperando o próximo, a próxima onda. Foi horroroso, sem motivação, sem atividade, sem muita briga...
Quando o movimento começou, tratava-se de uma geração nova, que estava mudando até o perfil epidemiológico da deficiência. Chegava muita gente jovem no movimento, cuja deficiência era fruto de acidente com mergulho, acidente de carro e tiro. Eram pessoas jovens, entre 15 e 30 anos de idade, que vinham com energia e ideologicamente motivados, querendo resgatar a própria vida. Os encontros nacionais eram realizados em estádio de futebol. Dormíamos em quartos com 30 camas-beliche, e todo mundo participava de qualquer maneira.
Depois a poeira foi se assentando e só ficaram as pessoas mais envolvidas. Aqui no Rio, aquela fase foi muito intensa ainda porque nos envolvemos com o movimento político em geral, como a campanha pelas Diretas Já e a campanha do Lula para presidente. E havia alguns deputados e vereadores que se tornaram nossos porta-vozes. Vivíamos dentro dos gabinetes, na Câmara Municipal e na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro elaborando toda a legislação na área da deficiência que deu base para o que hoje está aí em vigor.
Lembro-me de Luiz Henrique Lima, do PDT um jovem economista do movimento estudantil que se elegeu e se reelegeu como vereador e, depois, como deputado. Entramos no gabinete dele e não saímos mais.
Entrevistador: O que motivava fazer essa Coalizão?
Rosangela Berman Bieler: O que motivava era uma lógica organizacional. Todo mundo estava se organizando para poder sentar-se, em algum momento, àquela mesa de negociação. Mas para isso você tinha de ter meios de poder eleger as pessoas para as internacionais de cada área. Eu fui representante do Brasil na Disabled Peoples International (DPI), que também foi fundada naquela época. Trata-se de um movimento associativo representativo, por isso eram necessárias as estruturas para eleger as pessoas. Mas criou-se um elefante branco. Creio que essas estruturas são fadadas a fracassar porque são criadas sem base de sustentação.
A Constituinte, o Estatuto e a Convenção da ONU.
Entrevistador: Talvez a Coalizão tenha sido uma estrutura sem a base, ou a base não estava madura o suficiente.
Rosangela Berman Bieler: Exatamente. Depois de certo ponto, cada área começou a se desenvolver pelas próprias linhas, buscando os próprios recursos, e se juntavam eventualmente, quando tinham alguma coisa em comum, como foi a reforma constitucional, que gerou um movimento muito forte e muito legal. Conseguimos, naquela época, influir muitíssimo na Comissão Temática da Ordem Social. Eu ia para Brasília com a Mel bebê e participava das audiências, nas comissões, no Senado e na Câmara. E conseguimos, na reforma constitucional, distribuir o tema da deficiência em todos os artigos constitucionais, o que já é vanguarda.
Paulo Roberto Guimarães Moreira, paraplégico, estava no Ministério da Cultura, na época da Constituinte, e foi fundamental nessa articulação. Maurício Zeni foi um arcabouço ideológico muito grande, aqui no Rio e nacionalmente, de fazer a gente pensar em muita coisa importante, que hoje é vanguarda e que o movimento por inteiro ainda não conseguiu absorver, inclusive em relação a ações afirmativas como o sistema de cotas no mercado laboral que começava a ser desenhado.
Quando você utiliza um texto constitucional, há duas opções estratégicas: ou se cria um bloco inteiro sobre deficiência – que é o que o atual Estatuto da Pessoa com Deficiência quer fazer –, pega tudo e joga ali naquela caixinha, que não só é mais fácil de botar como é fácil de tirar; ou se integra o tema em todo o corpo constitucional, nos tópicos do direito do cidadão: do direito à saúde, do direito à educação...
O Estatuto da Pessoa com Deficiência tem essa proposta de juntar tudo o que conseguimos espalhar na Constituição brasileira – porque o contrário de criar caixinhas é começar a fazer esse ser um tema de todo mundo, e não de um grupo; o objetivo não é marcar que nós somos 10% da população, mas que somos parte dos 100% da população; parece que é a mesma coisa, mas não é. Essa era a estratégia do movimento organizado que participou da reforma constitucional.
As pessoas que participaram daquele processo todo têm, hoje, muita clareza da importância disso. E são as pessoas que resistem ao Estatuto. Agora que a Convenção entrou como texto constitucional, não há a necessidade de fazer Estatuto nenhum.
A mudança no perfil das instituições no início da década de 1990.
Entrevistador: Por que essas instituições, que apareceram na década de 1980 e se proliferaram no Brasil, não permaneceram?
Rosangela Berman Bieler: Todas elas foram organizações construídas com bases voluntárias, nem um pouco profissional. Nunca no Brasil houve apoio financeiro de órgão público, como existe lá fora, para esse tipo de organização. O único momento em que esse movimento acabou mudando um pouco de cara foi quando algumas associações começaram a se profissionalizar, o que ocorreu, principalmente, com o processo da empregabilidade surgido no Brasil.
Creio que era na época do Collor. Havia um movimento de enxugar a máquina pública demitindo funcionários públicos e estimulando aposentadorias. Criou-se uma crise interna porque a lei não permitia contratar, mas a máquina tinha de continuar funcionando.
O movimento conseguiu penetrar – foi uma oportunidade, para não dizer oportunismo – por meio de uma revisão da CLT que dizia que as autarquias e as empresas públicas poderiam contratar apenas se fosse mediante uma associação de pessoas com deficiência. Além de milhões de organizações fantasmas que se criaram, algumas associações de se tornaram empregadoras para o serviço público. Em Minas Gerais, Rio e Nordeste, isso foi superforte.
Dessa forma, começou a entrar dinheiro para as organizações que até então eram organizações de luta, de militância política reivindicatória e representativa, nas quais todo mundo trabalhava como voluntário. De repente, começou a cair uma fortuna de dinheiro nas mãos dessas pessoas. Até hoje algumas organizações têm esses contratos, nos quais, com pouca variação, as pessoas são selecionadas, treinadas e colocadas para trabalhar dentro da empresa.
Criam-se cooperativas, inclusive de pessoas surdas para trabalhar na área de informática. Os contratos eram terceirizados porque as empresas não podiam ter funcionários contratados diretamente. O funcionário era da entidade, trabalhando dentro da empresa. A empresa pagava a entidade, que pagava o funcionário e ganhava 20% de taxa de administração, o que era muito dinheiro para quem nunca teve dinheiro nenhum. Isso foi um tsunami no movimento, porque mudou completamente a cara e o objetivo das organizações, que se tornaram empregadoras.
Perdeu-se a característica de luta, de representação; algumas organizações ficaram poderosíssimas, e, embora as pessoas não estivessem militando nelas, eram funcionárias e não queriam perder o emprego. Eram massa de manobra. Isso aconteceu no país inteiro. Naquela época se abriu um mercado de trabalho enorme na área da deficiência, e foi o começo do fim do movimento, como o conhecíamos.
Entrevistador: Coincidindo com a saída das ONGs para o Leste Europeu.
Rosangela Berman Bieler: É. No país todo, depois da abertura política, houve certo marasmo em vários aspectos. Perdemos o inimigo comum. E, na área da deficiência, começaram a surgir os “cartolas”.
As alianças, os conflitos e a construção de conceitos no movimento.
Entrevistador: De 1980 até 1988, que alianças se construíram?
Rosangela Berman Bieler: Tínhamos uma estrutura de movimento que começou a se fortalecer, e as pessoas começaram a se conhecer. Ninguém se conhecia naquele ponto. Era tudo novo. As lideranças começaram a despontar, até mesmo aquelas que nem imaginavam que iam se tornar lideranças.
A voz da área da deficiência não era uma coisa muito forte, mas já tinha suas características. Havia um braço forte do movimento que vinha da Igreja Católica “de esquerda”. Da Igreja também havia uma organização, que ainda existe: a Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes, que é internacional e era bem forte no Brasil. Era a única organização naquela época que reunia todas as áreas de deficiência, que é a proposta que depois os Centros de Vida Independente trouxeram. E eram bem articulados.
Conflitos estavam se desenhando com a personalidade desse movimento, mas ainda não eram claros. Por exemplo, os pais das pessoas com deficiência. Como eles ficavam? Eles não eram nem de nem para. Os filhos deles não podiam se autorrepresentar, e a gente também não os representava. Alguém tinha de representar, mas eles eram a voz da “tutela”.
Estávamos negociando muitas coisas ao mesmo tempo, conceitos muito arraigados contra outros muito novos. Tudo era muito novo. Estávamos aprendendo a falar uma linguagem política. Tudo foi uma negociação, uma construção coletiva – aprender fazendo. Como fala, quem fala, quem representa, como elege, construir os estatutos, rever. Muita paixão e muita motivação.
Entrevistador: No paradigma da tutela havia instituições, nesse momento, com as quais vocês precisavam fazer acordos, alianças?
Rosangela Berman Bieler: Morhan também foi assim. Quem trouxe o Morhan, em 1980, foi Thomas Frist, diretor de um hospital de São Paulo de hansenianos (que eram chamados, naquela época, de “leprosos”). Thomas era um missionário e trouxe a questão do Morhan para o movimento, que não era uma área típica, mas era superforte porque o Brasil era e ainda é um dos países com maior incidência de hanseníase no mundo, e a hanseníase leva a todo tipo de deficiência – visual, motora, etc., além da exclusão, do estigma, da discriminação incomparável.
Naquele momento, quanta coisa estávamos absorvendo e processando: o que é discriminação, o que é estigma, o que são direitos iguais, o que é equiparação de oportunidades, o que é integração social, o que é emancipação. Todas essas palavrinhas mágicas eram o menu do qual estávamos aprendendo no dia a dia, além das palavras de ordem e das práticas de organização... E, além de tudo isso, estar se conhecendo. Foi um momento de ebulição muito forte, de estar pensando conceitos.
Um balanço da década de 1980.
Entrevistador: Desde o Ano Internacional das Pessoas Deficientes até a Constituinte, quais acontecimentos você diria que são mais relevantes?
Rosangela Berman Bieler: Os mais representativos: a criação e a estruturação do movimento, por meio das federações, a reforma constitucional e a lei de criação da CORDE.
Entrevistador: Por que a CORDE aparece com tanta importância?
Rosangela Berman Bieler: A CORDE, que surgiu a partir da demanda do Ano Internacional, foi a primeira que já quebrava um pouco o paradigma da caridade e do assistencialismo nessa área da deficiência. Na década de 1980, quebrou-se o discurso assistencial e criou-se o discurso de direitos nessa área.
Entrevistador: Esse seria o grande marco do movimento na década de 1980?
Rosangela Berman Bieler: Sem a menor sombra de dúvida. As pessoas com deficiência começam a repensar todos esses conceitos dos quais falamos, inclusive o do assistencialismo. Apareceram temas como equiparação de oportunidades e emancipação social. O movimento do Maurício Zeni aqui era “Movimento pelos Direitos e pela Emancipação dos Cegos”. Eram palavras refletindo conceitos que até então não estavam no nosso imaginário.
A polarização regional do movimento.
Entrevistador: No final da década de 1980 veio uma crise...
Rosangela Berman Bieler: Há uma coisa interessante na história do movimento, que é a polarização do movimento no Brasil: Brasil versus São Paulo – no meu ponto de vista.
Mas é interessante, porque vejo como duas histórias paralelas: a história paulista, que deu um grande impulso no surgimento do movimento em nivel nacional, formou muitos líderes paulistas ou que estavam em São Paulo fazendo reabilitação (caso do Cláudio Vereza, do Espírito Santo), dos quais a maioria do pessoal do resto do Brasil nunca tinha ouvido falar; e a história do “outro” movimento de luta, no nosso caso a ONEDEF, que contou com gente e entidades do Brasil todo e poucas de São Paulo. Enquanto isso, eles estavam fazendo o próprio movimento – como se fosse um movimento nacional: o Movimento pelos Direitos da Pessoa com Deficiência (MDPD), que teve quadros muito fortes e importantes como Cândido Pinto Melo, Gilberto Frachetta, Romeu Sassaki, Rui Bianchi e muitas outras pessoas de São Paulo.
Até que em 1987, 1988, houve um encontro nacional da ONEDEF, em Manaus. Naquela época, o presidente da ONEDEF era Messias Tavares, de Recife. O pessoal de São Paulo foi para Manaus para tirar a ONEDEF do grupo que estava há anos envolvido na organização – eu incluída – e ganhou a eleição. O novo coordenador eleito foi Rui Bianchi. Foi um momento pesado, pois durante o encontro houve acusações falsas e infundadas, desrespeito pelo trabalho feito... Isso acontece muito no Brasil.
Fazíamos o jornal Etapa desde 1980, e ele já era estabelecido. Mas resolveram desmanchar o conselho editorial do jornal e levá-lo para São Paulo. Sabíamos que não ia durar. Saiu o Etapinha, um folhetinho, uns dois números, e acabou. Acabou-se o jornal que era a voz, a cara e a articulação do movimento.
A fundação e atuação do CVI-Rio e suas particularidades.
Naquela época, fui convidada para participar de uma entidade de intercâmbio internacional, Companheiro das Américas, e fui visitar os Estados Unidos pela primeira vez. Foi quando conheci o primeiro Centro de Vida Independente (CVI). Quando voltei, três meses depois, fundamos o primeiro CVI daqui, em 1988. Começamos a colocar o enfoque da entidade em prestação de serviços, mas serviços oferecido pelas próprias pessoas com deficiência para pessoas com deficiência. Começamos de novo a trabalhar com cooperação internacional. Naquela época, entrei para a Ashoka, uma fundação de empreendedores sociais, uma fellowship internacional que busca identificar líderes sociais com determinado perfil: inovadores, com “fibra ética inquestionável”, com projetos multiplicáveis, etc.
Naquele momento, estávamos começando a fundar o CVI e fomos uma das primeiras turmas financiadas pela Ashoka no Brasil. Entre os membros estavam Valdemar de Oliveira Neto (Maneto), Wanda Engel Aduan, Marlene Morgado e Marta Gil.
Utilizamos o recurso da Ashoka para alugar uma casa para o CVI-Rio e contratar três pessoas com deficiência. Criamos um modelo diferente, porque as organizações não tinham contratadas pessoas com deficiência trabalhando e prestando serviço para as próprias pessoas com deficiência, a não ser os grandes grupos de empregabilidade, como a Associação Mineira de Paraplégicos (AMP), de Belo Horizonte; a Associação Niteroiense dos Deficientes Físicos (ANDEF); a Sociedade Amigos do Deficiente Físico (SADEF) no Rio; dentre outras.
Depois da verba da Ashoka, conseguimos recurso para um projeto com a Fundação Vitae, outro com a ICCO Holandesa. Aí começamos a trabalhar com a PUC, conseguimos mil dólares do Rotary, compramos um contêiner furado que não estava sendo utilizado, colocamos no estacionamento da PUC e fomos tapando os buracos. Depois compramos o segundo contêiner, e a arquiteta Verônica Camisão fez virar aquele lugar lindo, maravilhoso, com aquela árvore divina no centro.
Temos uma equipe trabalhando junto há trinta anos: Sheila Bastos Salgado, Lilia Pinto Martins e Beth Caetano Almeida, que foram do começo do movimento e que continuaram no CVI. Pessoas também importantes no CVI-Rio foram Maria Paula Tepperino, Izabel Maior – as duas foram da Diretoria do CVI –, Geraldo Nogueira, Renata Eyer, Rita Maria Aguiar, Ethel Rosenfeld e várias outras que fizeram parte do que eu chamo “Equipe Nota 10”.
Entrevistador: Quais foram as ações do CVI?
Rosangela Berman Bieler: Aconselhamento entre Pares, adaptações para a Vida Diária, Apoio Jurídico, Acessibilidade... Fazíamos cursos e, no começo, a gente convidava pessoas recém-internadas na ABBR, que fica localizada perto da PUC, para vir fazer esses cursos no CVI-Rio, e a ABBR não deixava. Hoje os próprios funcionários da ABBR vêm fazer os cursos. Foi um espaço que foi sendo conquistado. Hoje as pessoas com deficiência treinam atendentes pessoais, que é um mercado que surgiu, também, do Movimento de Vida Independente. A base desse movimento é facilitar, favorecer a autonomia e a autodeterminação da pessoa com deficiência, mesmo quando a dependência física for muito grande. O nome em português é até ruim, porque deveria ser Movimento de Vida Autônoma e não de Vida Independente, que dá a impressão de que a pessoa deve fazer tudo por si só, e não é isso. A independência é a autonomia pessoal de decidir o que fazer com o próprio tempo, tomar as próprias decisões, fazer as próprias escolhas, correr os próprios riscos, porque muitas vezes a pessoa com deficiência não tem nem chance de correr riscos por causa do paternalismo ainda existente. Ou seja, estar no controle da sua própria vida. Isso é a base do movimento Vida Independente.
Quando saí do Brasil, o CVI-Rio já estava forte, tínhamos realizado congressos internacionais importantes no Rio, como o DEF-Rio 92 e o DEF-Rio 95. Foram marcos bem expressivos no movimento no Brasil.
Entrevistador: O CVI tem um pé também na militância política?
Rosangela Berman Bieler: Total. O Rio de Janeiro, nos últimos 20 anos, vem influindo nas politicas públicas. Para o Projeto Rio-Cidade, por exemplo, o CVI deu assistência técnica ao Governo e garantiu a acessibilidade das ruas do Rio, num trabalho modelar da arquiteta Verônica Camisão. O CVI-Rio também lançou o conceito de desenho universal no Brasil e realizou os primeiros seminários técnicos nessa área. De mídia e deficiência, também, dentre outros temas.
Entrevistador: É uma forma de ação política diferente, não é aquela ação de ir a Brasília brigar para as leis serem aprovadas...
Rosangela Berman Bieler: Isso fizemos, e fazemos, também. Participamos da criação da legislação do Estado, do município e, também em nível federal. No Rio, processamos as companhias de transporte coletivo e acabamos de ganhar uma causa que já estava tramitando há 18 anos contra o Metrô. Fizemos milhões de passeatas e manifestações. Mas temos, também, uma cara técnica hoje. Temos o discurso da militância somado a uma capacidade técnica de responder às demandas não atendidas pelos serviços existentes.
Entrevistador: Quais as dificuldades do CVI?
Rosangela Berman Bieler: Não foram nunca facilidades; foi tudo muito na marra. Durante um ou dois anos, a bolsa (800 dólares) que eu ganhava da Ashoka por mês serviu para pagar aluguel, água, luz, toda a estrutura e mais quatro pessoas com deficiência trabalhando. Mas o que leva às facilidades é a paixão, a determinação e as alianças que você consegue ir costurando. E as pessoas foram se somando pela identidade cultural, ideológica, filosófica que estávamos construindo. Pessoas com deficiência de outros Estados vinham para ser capacitadas e se apaixonavam pela filosofia de vida independente, voltavam para suas cidades e criavam novos centros de vida independente. Quer dizer, houve um boom novamente, como no começo do movimento.
Entrevistador: Foi uma mudança de paradigma, de novo.
Rosangela Berman Bieler: Foi. O paradigma de vida independente mudou muito a cara do movimento. As pessoas novas, que entraram e nem sabem dessa história, já vieram com outra linha completamente diferente, da inclusão, e com as áreas de deficiência colaborando e trabalhando junto. Tanto que hoje você não ouve praticamente falar em ONEDEF ou FEBEC.
Da FENEIS se ouve falar porque eles viraram um empregador fortíssimo no movimento de empregabilidade e, ao meu ver, se fecharam num gueto. Enfim, uma opção da área. Uma linha no movimento, liderada pela FENEIS no Brasil, diz que os surdos não são deficientes, e, sim, uma cultura à parte – a cultura surda – que é contra a educação inclusiva. São bem segregados. Mas há outra linha de surdos oralizados. O Movimento de Vida Independente (MVI) tem a sorte de contar com a participação ativa da Anahi Guedes, de Florianópolis, uma mulher surda brilhante.
Os DEFs-Rio 92 e 95.
Entrevistador: O CVI organizou os DEFs-Rio?
Rosangela Berman Bieler: Um em 1992 e outro em 1995. Presidi os dois DEFs-Rio. O de 1992 começou porque estávamos trabalhando internacionalmente em grupos com temas de acessibilidade e desenho universal e de mídia e deficiência, dentre outros.
Em 1992 ocorreram dois momentos: a ECO-92 em junho e o DEF-Rio em outubro.
No Fórum de ONGs da ECO-92, no Aterro do Flamengo, organizamos, junto com a Organização Mundial de Pessoas com Deficiência (DPI), o 1º Encontro sobre Meio Ambiente e Deficiência. Foi muito legal. Veio gente do mundo inteiro. Foi um momento superforte, pois estávamos atuando junto com todos os outros movimentos sociais fora do gueto da deficiência apenas.
No DEF-Rio 92, aproveitamos para fazer tudo junto. Aproveitamos que as pessoas já tinham vindo e ficava mais barato reunir várias atividades ao mesmo tempo do que ficar criando um monte de caixinhas. Estávamos envolvidos com o Real Patronato sobre Discapacidad, um grupo espanhol que realizava eventos sobre mídia, sobre reabilitação e sobre acessibilidade. Cada ano era em um país e naquele ano propusemos o Brasil para sediar o encontro de mídia e o de acessibilidade, quando lançamos o conceito de “desenho universal” na região. Os espanhóis “surtaram”, literalmente, no meio do auditório porque desenho universal era uma terminologia norte-americana, e até então só “permitiam” falar de “acessibilidade ao meio físico”. Os espanhóis eram “donos” desse assunto no mundo hispânico. De modo que rompemos muito mesmo.
Então, no DEF-Rio 92, acabamos fazendo no Hotel Othon o 1º Encontro Nacional de Intérpretes de Linguagem de Sinais, o evento de acessibilidade e desenho universal, o de comunicação e deficiência e mais dois eventos: um de gênero e outro de pais de crianças com deficiência mental. Este último foi organizado pela Confederação Interamericana de familiares de pessoas com deficiência intelectual (CILPEDIM) – hoje Inclusion International. Veio gente da América Latina inteira para o Encontro de pais de crianças com deficiência mental.
Então, havia deficiência mental, língua de sinais, acessibilidade, mídia e gênero. Cada um tinha sua praia, seu grupo de interessados. Fizemos a primeira exposição de equipamentos, enorme, e show de dança em cadeira de rodas, atividade que estava começando no Brasil – o primeiro grupo surgiu do pessoal do CVI. Enfim, festa maravilhosa, da qual saíram vários casamentos do movimento. Foi uma coisa que marcou muito.
Depois veio o DEF-Rio 95, que foi a minha despedida do Brasil, literalmente. Foram, creio, 15 eventos em uma semana, no mesmo centro de convenções. Mais de 3 mil pessoas e 40 países.
Entrevistador: Quais eram os assuntos?
Rosangela Berman Bieler: Começamos a articular com as várias áreas, sempre trabalhando muito com entidades de e para, governo e cooperação internacional. Cobrimos um monte de temas, durante uma semana intensíssima de eventos – todos “misturados”. Foi o máximo e deu supercerto. Dentro do DEF-Rio 95 a gente iniciou também o processo pró Federação Nacional dos Centros de Vida Independente, hoje CVI-Brasil.
Um paralelo entre o Brasil e o contexto internacional.
Entrevistador: Da sua experiência com a realidade mundial, qual paralelo você faria com o Brasil?
Rosangela Berman Bieler: Já trabalhei no mundo todo e tenho essa visão bem clara. Acabamos comparando, porque não há como não fazer, mas não acredito que possamos realmente comparar pera com banana.
Na verdade é impossível você comparar as realidades por causa do nível de complexidade de cada lugar, de cada cultura, de cada economia, de cada contexto social. São tantos fatores incidindo que a realidade de cada lugar é muito própria. No Brasil, então, isso é muito nítido, porque é um país novo, sem tanta história e sem tradições fortes. As coisas vão caindo aqui e pegando, ou não pegando. Mas aqui no Brasil há Primeiro Mundo e Quinto Mundo ao mesmo tempo, e toda essa gama de diversidade no meio.
Uma coisa que é inquestionável: os Estados Unidos, em termos de infraestrutura e até de história de direitos na área da deficiência, está a anos-luz, inclusive da Europa. Também por ser um país novo e não ter tanta tradição e tanta amarra como os europeus têm. A Europa vai chegando perto, mas não se compara.
Elaboração e ratificação da Convenção da ONU.
Entrevistador: E em termos de unificação do movimento?
Rosangela Berman Bieler: Em todos os lugares é a maior “brigalhada”. Um momento que foi incrivelmente rico e de aprendizagem das pessoas com deficiência no movimento foi na negociação da Convenção da ONU. Estávamos lidando, pela primeira vez, com diplomatas e tínhamos de aprender o discurso diplomático e a negociar, porque uma Convenção é o mínimo que todo mundo pode concordar, mas não é o máximo que desejamos. O militante quer o máximo, mas ali tinha de ter o mínimo, o princípio do qual não se pode abrir mão. Imagine negociar quando em um país a mulher usa burca e no outro se discute saúde sexual e reprodutiva das lésbicas? Fica um pouco complicado.
Isso foi uma aula para o movimento internacional. Foram cinco ou seis anos de negociação nos quais as próprias entidades internacionais tiveram de se tolerar, se aguentar e negociar entre elas a voz e a participação. Surgiram novos atores. E isso é assim em todas as áreas, não é um privilégio da deficiência. Em qualquer grupo social que se organiza, o que menos vai haver é falta de conflito.
Entrevistador: Como você explica o movimento cíclico dos avanços em relação aos direitos das pessoas com deficiência?
Rosangela Berman Bieler: Supercíclico. Ele avança quando tem oportunidades. Por exemplo, o movimento deu uma avançada incrível com a Convenção da ONU, porque se organizou. Mas o movimento pela ratificação da Convenção não teve muita participação de vários dos líderes tradicionais ou das cabeças das organizações. Quem fez esse movimento foi o povo; na área da deficiência, foi o povo. “Assino inclusão”, uma lista de discussão, que um foi passando de um para o outro pela internet, fez uma superpressão. CONADE, CORDE, todo mundo junto participou. Mas não foi um movimento de líderes, foi de bases. E foi lindo e inovador.
Entrevistador: Coordenado pelo CONADE?
Rosangela Berman Bieler: Não mesmo! O CONADE foi mais um ator. Esse movimento pela ratificação foi coordenado pelas bases do movimento. Uma pessoa que estava começando, Cláudia Grabois, por exemplo, mãe de criança com deficiência intelectual, pegou o negócio com aquela paixão de quem está começando e conseguiu 3 mil assinaturas em uma semana. Foi assim com outros também.
O movimento pela ratificação da Convenção da ONU e coisas que aconteceram depois, ao contrário, revelam a fragilidade do movimento tradicional e das organizações e mostram a fortaleza dos movimentos espontâneos e menos institucionalizados. Com certeza.
O nosso Instituto Interamericano sobre Deficiência e Desenvolvimento Inclusivo (IIDI), teve muito a ver com todo o processo de desenvolvimento e aprovação da Convenção também. De várias formas. Começamos uma lista de discussão na América Latina há muitos anos e ajudamos a informar, a mobilizar, a capacitar e a viabilizar a participação na ONU de líderes de América Latina, incluindo o Brasil. Hoje em dia, os líderes da América Latina trabalham com os líderes do Brasil e são membros da RIADIS.
Os desafios futuros.
Entrevistador: O que você acha que precisa avançar e o que você acha que avançou mais?
Rosangela Berman Bieler: Avançamos nos conceitos. O País é muito grande, é difícil trabalhar no Brasil – hoje em dia as dificuldades estão diminuindo com internet – porque há níveis de desenvolvimento muito diferentes em cada região do País.
Mas sempre houve uma crise, uma falta de atenção, uma falha muito forte – a qual, de certa forma, trabalhamos no começo do Movimento de Vida Independente –, que foi a formação e capacitação de quadros novos para o MVI. Isso sempre foi um problema. Quando os velhos se cansavam ou queriam sair fora por qualquer razão – porque ninguém fica o tempo todo no poder –, nunca tínhamos quem assumisse. Isso estava gerando um círculo vicioso muito sério, um esvaziamento.
O Brasil é isto: há áreas em que ele está arrebentando. Agora, temos legislação, a Convenção, um monte de coisas, mas nossas associações são fraquíssimas, o movimento articulado está fraquíssimo. Por outro lado, o “cidadão individual”, ou menos institucional, está se fortalecendo cada vez mais. Essa é a esperança. Vamos derrubar os muros das instituições. Se conseguirmos fazer com que o tema da deficiência seja de todas as pessoas, e não de alguns ou de algumas instituições, isso é trabalhar inclusão. E, de alguma forma, já está acontecendo. Quando conseguirmos nos desprender dos fatos do dia a dia e olhar com mais distanciamento, veremos que é isso que vai impactar o Brasil: é aquela pessoa que surgiu em um determinado contexto e trouxe uma contribuição. Não vão ser os baluartes, os jurássicos, os não sei o quê. As pessoas têm de fazer a parte delas e ir embora, sempre em parceria com seus pares.
E estamos bem nessa fase agora, de derrubar instituições e criar um movimento cidadão. A ratificação da Convenção foi isso. É a parte mais saudável do movimento hoje no Brasil, sem dúvida. É muito bom que isso esteja acontecendo. As instituições estão mal. Aquela estrutura toda que passamos dez anos construindo, todas as casinhas de baralho, teve um papel e cumpriu sua função, sem dúvida. Mas agora queremos outra coisa: liberdade e estratégia. É preciso desinstitucionalizar, misturar, trabalhar com todos os atores dentro e fora da deficiência, fazer com que esse assunto seja realmente um assunto de todos.
Trabalhamos este conceito: a deficiência é parte do ciclo de vida de todas as pessoas. Não é uma coisa, um grupo que tem um cartão de identidade, mora em tal lugar e você sabe como chega lá. Não é mesmo. Deficiência, no modelo social e da limitação funcional, é parte do ciclo de vida das pessoas. Quando você é bebê, precisa do colo da mãe para andar na rua ou da ajuda de um adulto. Quando você está grávida, não sobe em ônibus. Todo mundo vai ficar velho, e com 65 anos de idade sua audição, visão, capacidade motriz e mental é outra. É parte do ciclo de vida.
Quando a gente vê isso assim, entende que tudo que está construído – serviços, programas, espaços – deve ser acessível para todas as pessoas, e não para aquele grupo dos 10%. É esse o contexto em que trabalhamos no modelo social e no desenvolvimento inclusivo.
Agora, a expansão, a partir da Convenção, vai ser para o movimento cidadão mais amplo, de direitos, menos restrito na deficiência. Vai ser pelo ser humano mesmo, pela inclusão. As pessoas com deficiência vão querer ser incluídas pelo que as iguala mais do que pelo que as diferencia.
Do livro: "História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil".
Presidente da República: Luiz Inácio Lula da Silva.
Ministro de Estado Chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República: Paulo Vannuchi.
Secretária Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência: Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior.
Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura – OEI.
Secretário-Geral da OEI: Álvaro Marchesi.
Diretora da OEI no Brasil: Ivana de Siqueira.
Ficha Técnica da entrevista:
Entrevistadores: Mário Cléber Martins Lanna Júnior e Camila Barcelos Lisboa.
Local: Rio de Janeiro-RJ
Data: 2 de fevereiro de 2009.
Duração: 3 horas.
Reprodução autorizada, desde que citada a fonte de referência.
Distribuição gratuita. Impresso no Brasil.
Copyright 2010 by Secretaria de Direitos Humanos.
Tiragem: 2.000 exemplares - acompanhados de cd-rom com o conteúdo em OpenDOC, PDF, TXT e MecDaisy - 1ª Edição - 2010, 50 exemplares em Braille.
Este livro faz parte do Projeto OEI/BRA 08/001 - Fortalecimento da Organização do Movimento Social das Pessoas com Deficiência no Brasil e Divulgação de suas Conquistas.
Referência bibliográfica :
Lanna Júnior, Mário Cléber Martins (Comp.). História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2010. 443p. : il. 28X24 cm.
Ficha Catalográfica:
H673 História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil / compilado por Mário Cléber Martins Lanna Júnior. - Brasília: Secretaria de Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2010. 443p. il. 28x24 cm.